Monday, December 31, 2007

Saldo 2007: positivo

Depois que li minha última postagem percebi que deixar tal texto como última postagem do ano seria muito amargo para um ano que foi muito generoso comigo. Vamos à lista de pontos positivos:

1) Finalmente consegui um emprego em um colégio particular de Porto Alegre! :)
2) Fiz amizades ótimas neste colégio!
3) Finalmente comecei a fazer aulas de canto!
4) Cantei no Teatro de Câmara Túlio Piva!
5) Fiz mais amizades ótimas na escola de música!

Que estas novas amizades perdurem e que tragam sempre mais novas amizades!!!

Thank you very much, 2007!

Feliz 2008 a todos!


Marcos, Ester, Maurício, Eu, Gilson e Fabinho pouco antes de entrarmos no palco: algumas das pessoas muito legais que conheci em 2007.

Vale tudo na Republiqueta da(o)s Bananas

Em 2008, a novela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e exibida pela Rede Globo, completa vinte anos. Quem assistiu não esquece. Não lembro de novela mais cruamente realista. Odete Roitman esculhambando o país, Marco Aurélio dando uma "banana" para ele enquanto foge com uma mala de dólares.

Lembro de uma cena em que Maria de Fátima (Glória Pires) tentava aplicar um migué em Marco Aurélio (Reginaldo Faria), ao que este respondeu, do alto da sua mesa de executivo da empresa do setor de aviação (ironia do destino!) TCA, em bom sotaque carioca: "Só se for pra tuas nêga!" Se Bakhtin tivesse visto isso, iria adorar ver um representante da elite emitindo esse discurso com desvio do padrão formal da língua. Ponto para os autores do diálogo, que chamaram a atenção do povo para o fato de que a elite brasileira pode até ser elite, mas, ainda assim, continua sendo brasileira - e isso dispensa comentários. Daí o "só se for pra tuas nêga!"

O que me fez lembrar desta novela foi uma foto publicada na edição de retrospectiva 2007 da Veja: uma foto de Renan Calheiros literalmente fazendo careta de deboche para todos nós. Como não lembrar da "banana" de Marco Aurélio? Como não lamentavelmente concordar com Odete Roitman?

Acho graça quando alguns brasileiros escrevem em letras garrafais pelos cartazes e muros afora que querem sua dignidade de volta. De volta? Algum dia houve dignidade?

O Brasil só vai ter dignidade - e a partir disso, começar a crescer - quando admitirmos, primeiro para nós mesmos, depois para o mundo (que já está careca de saber) que nós somos escravos, que fazemos o trabalho sujo que os países desenvolvidos preferem pagar para que façamos para eles porque estão ocupados com atividades mais nobres. Quando realmente conseguirmos não mais nos ofender quando os estrangeiros pensam que Brasil é só futebol e samba - porque, de fato, o Brasil é mesmo só futebol e samba, se não fosse, o povo não teria ficado mudo diante da absolvição de Renan Calheiros -, e decidirmos tirar proveito disso, aí, sim, talvez façamos progressos.

Em 2001, em um discurso para empresários brasileiros, o então presidenciável Lula disse que os países desenvolvidos precisam saber que o Brasil não é uma republiqueta das bananas. Mas o Brasil é uma republiqueta das bananas. E as bananas, aqui, têm triplo sentido.

Cena de Odete Roitman falando mal do Brasil:

http://www.youtube.com/watch?v=gloar9xq-ok&feature=related

Sunday, December 02, 2007

"Eu pensava que era assim"

Outro dia fiquei sabendo de uma notícia infelizmente não tão incomum: um pai que levava diariamente a filha à escola abusava dela – também diariamente – no meio do trajeto. Perguntada sobre o porquê de nunca ter reclamado do abuso a outros adultos, a menina respondeu singelamente, como só as crianças sabem ser: “eu pensava que era assim”.
Não me chamou tanto a atenção a violência. Chamou-a a resposta da menina: “eu pensava que era assim”. É verdade, quando somos crianças, o mundo é a nossa família. Se nossos pais costumarem beber água do bico da chaleira, vamos achar que doidos são os que têm o estranho hábito de tomar água em copo. Talvez a menina achasse natural não só ser abusada – para ela, nem era abuso – mas também tenha crescido acreditando que aquilo tudo fazia parte do “ritual” de ir à escola. Pode ser que ela supusesse, ao chegar na sala de aula, que também suas coleguinhas faziam aquilo com seus respectivos pais. E que também elas tinham sangramentos e desconfortos, coisas naturais de se ir à escola e do relacionamento com os pais.
Fico imaginando a perplexidade da menina diante da perplexidade dos demais adultos quando lhe perguntaram porque nunca havia se queixado. Deve ter se sentido como nós nos sentiríamos caso um grupo de adultos nos tivesse perguntado, quando éramos crianças: “O quê?! A sua mãe manda você tomar banho todos os dias depois que chega da escola?! Gente, a mãe dela manda ela toma banho todos os dias quando chega da escola!” Vêm dois ou três adultos e me abraçam com compaixão: “Meus Deus! Banho todos os dias ao chegar da escola! Fazer isso com uma criança inocente! Como tem gente doente neste mundo!!!” Tiram-me da guarda da minha mãe, prendem-na, e passo a conviver com olhares piedosos em minha direção. E eu, que achava que tomar banho depois da escola era a coisa mais trivial do mundo! Que jurava que todos os meus colegas faziam o mesmo!
Mas mais do que tudo isso, fico pensando em quantas coisas fazemos até hoje – conosco mesmos e com os outros – só porque “pensamos que é assim”. Quantas atitudes e reações absurdas não temos porque nos naturalizamos com elas? Aquela resposta atravessada, aquela omissão, aquelas renúncias, aquele acesso de riso, aqueles planos... Será que muito de tudo isso não é também algo bizarro?
Isso tudo me lembra o texto É preciso olhar a vida com olhos de criança, do pintor Henri Matisse. Diz ele:
“Ver já um ato criador que exige esforço. Tudo o que vemos, na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação gerada pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível em uma época como a nossa, onde cinema, publicidade e periódicos nos inundam diariamente com imagens preconcebidas, que são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário para desembaraçar-se disso exige uma espécie de coragem, e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver tudo como se visse pela primeira vez.”
Penso que devemos levar este jeito artístico de olhar à vida de modo geral. Não digo que devamos perceber tudo como se fosse a primeira vez – porque seria ingênuo e tolo. E também porque perdemos muitos detalhes nas primeiras vezes, porque há sempre algo que nos chama mais a atenção e ofusca os outros elementos. Nos ocupamos demais aprendendo a lidar com o novo, de modo que não podemos aproveitá-lo totalmente. Mas deveríamos procurar encontrar novos aspectos nas experiências, perceber o sol, a chuva, ou um beijo sem o tédio do hábito, e não sempre do mesmo modo simplesmente porque “pensamos que é assim”.

Saturday, September 22, 2007

O resgate da delicadeza


Apenas recentemente assisti ao filme O resgate do soldado Ryan. Tenho resistência a filmes de guerra – assim como a tenho em relação a livros também (dos quais Guerra e Paz entra na minha lista dos mais enfadonhos) –, mas, resolvi dar crédito a Steven Spielberg. E não me arrependi. Spielberg demonstrou extrema habilidade ao retratar o horror e a delicadeza que mesmo no pior dos horrores nunca deixa de brotar. A obra até evocou em minha memória o poema A flor e a náusea, de Drummond, aquele em que um eu lírico amargurado manda o mundo parar porque uma flor furou o asfalto, o nojo e o tédio.

O resgate do soldado Ryan é cinema de verdade. Sim, porque nem todo filme é cinema, assim como nem todo livro é literatura. No filme em questão, a imagem não é apenas um suporte para mostrar personagens em ação. Ela é um instrumento de expressão, assim como o mármore o é para o escultor. Chamou minha atenção a cena em que uma das personagens conta aos demais soldados, durante um raro momento de repouso, que na infância fazia um esforço danado para se manter acordado até a mãe, enfermeira, voltar do trabalho. Contudo, quando ela chegava, ele fingia estar dormindo, ainda que percebesse a presença da mãe na porta de seu quarto, louca de vontade de conversar com o filho e saber como foi seu dia. “Eu não sei porque eu fazia isso”, diz ele emocionado. Vale ressaltar que ele lembra desta história porque um companheiro reclama da falta de sono, ao que este aconselha: “É só tentar não dormir”. De fato, há coisas das quais quanto mais se tenta fugir, mais facilmente com elas se depara.

O que faz desta cena uma cena de cinema são os recursos visuais a que o diretor recorreu para contribuir na construção do seu significado. Enquanto o soldado fala deste seu conflito – ter sono quando se tenta se manter acordado, fingir dormir depois de ter feito um esforço para não dormir –, o ambiente está todo escuro, e algumas velas permitem ao espectador ver apenas as faces das personagens que falam. Praticamente uma tela de Caravaggio. Spielberg foi buscar na arte barroca, a arte das antíteses e do jogo de luz e sombra, um meio de expressar visualmente a ambivalência da personagem – e quem sabe da própria missão de salvar o soldado Ryan e da guerra como um todo.

Mas, foi outra cena que conquistou cadeira cativa na lista das minhas favoritas de todos os filmes a que já assisti. Trata-se daquela em que quatro soldados escutam Edith Piaf em meio a ruínas de um vilarejo da França. Tudo é lindo na cena: a incidência dos raios solares, a disposição simétrica das personagens – com um afastamento do soldado intérprete, porque seu temperamento difere muito mesmo do perfil dos demais –, as ruínas, a vitrola, e, é claro, a tristeza da voz quase inaudível de Piaf.

Para isso serve a arte: para ser um repouso da loucura. Para mostrar através dos sentidos do corpo que este corpo, além de ferramenta de batalha, também é o templo de uma alma capaz de transcendê-lo, mesmo que se seja um estrangeiro em meio a ruínas de um massacre.

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A música de Edith Piaf que faz parte da cena não foi uncluída no álbum da trilha sonora do filme (!!!). Mas ela está no YouTube, no vídeo abaixo:

Saturday, July 21, 2007

Cartas a um velho poeta


Meu caro senhor Rilke,

Estou há tempos lendo, gradativamente, as cartas que enviaste ao jovem poeta Kappus; e as leio em doses homeopáticas porque creio que, como um cálice de bom vinho, devem ser sorvidas aos poucos, para que eu assimile o quanto possa a sabedoria de que o senhor as impregna.

Não posso me furtar, no entanto, de lhe trazer más novas referentes à carta que escreveste em 14 de maio de 1904, quando se encontrava em Roma. Lamento muito, senhor Rilke – e não entenda este lamento como mera figura de retórica, mas como puro sentimento de alguém que se sente profundamente atingida pelo estado das coisas que a seguir vou lhe descrever –, mas suas previsões com relação à mulher e ao amor foram parcialmente equivocadas. E o pior é que o que deu de errado parece que não poderia ter saído pior.

De fato, conforme o senhor profetizou, a mulher conseguiu se desvencilhar de muitas “convenções do exclusivamente feminino”, como o senhor escreve. Porém, esta libertação resultou de uma migração às “convenções do exclusivamente masculino”, se me permite parafraseá-lo, o que, a meu ver, não me parece uma solução, mas a configuração de um novo problema cheio de dramáticos – se não trágicos – desdobramentos.

Se o senhor acreditava, no início do século passado, que a mulher se submetia a sucessivos e ridículos disfarces para purificar sua própria essência das influências deformadoras do sexo masculino, qual não seria sua perplexidade se a visse hoje?! A mulher se deixou deformar mais do que jamais havia permitido em sua época, senhor Rilke. Ela continua passando batom, usando brincos, caminhando sobre sapatos de salto alto e, depois de um período de suspensão cuja duração não posso precisar agora, até voltou a vestir saias. Entretanto, o que se observa é um descompasso entre forma e conteúdo. As mulheres, senhor Rilke, masculinizaram-se. Muitas têm, por exemplo, renunciado à maternidade, e outras tantas que não o fizeram parecem ter tido filhos apenas para cumprir um dever social, recusando-se a dar à luz por parto normal, a amamentar e a outras tarefas próprias do metier. Elementos que antes eram considerados parte de um processo natural são agora evitados ao máximo.

Não as culpo completamente. Há de se levar em consideração o fato de que as últimas gerações de mulheres têm mesmo aprendido que ser homem é melhor do que ser mulher. Desde cedo as menininhas escutam que menstruar, engravidar, parir e amamentar são desvantagens da condição feminina, e o senhor certamente concordará que o que se escuta cedo dificilmente deixa de ecoar até muito tarde. Incutem-lhes a idéia de que ser um desbravador como Ulisses é muito melhor do que esperar como Penélope, como se despertar ao raiar do sol e atravessar o dia até depois do crepúsculo sob a pele de uma mulher não fosse por si só uma odisséia esplêndida em terreno muito acidentado. O senhor compreenderá que quem lhes transmite tais pensamentos são pessoas como as que o senhor descreve na carta do dia 17 de fevereiro, ignorantes demais para perceberem o universo que há dentro de si mesmas.

Também as atitudes da mulher com respeito ao sexo mudaram. Dou-lhes razão no que se refere à sua liberdade de experimentar as sensações que seus corpos podem lhes proporcionar. O problema, senhor Rilke, é que a excessiva disponibilidade das mulheres tornou os homens menos viris. Ao receber uma negativa, o homem não insiste. Não sei o que passa por sua cabeça. Talvez ele pense que ela esteja fingindo desinteresse – e talvez ela esteja mesmo, porque outra coisa que as mulheres ouvem desde cedo é que homens apreciam mulheres difíceis, verdade da qual começo a desconfiar. E talvez ela esteja mesmo desinteressada. Pois, então, o natural seria que ele tentasse fazê-la se interessar! Qual o quê, senhor Rilke?! Há outros milhões de mulheres dizendo “sim” ao primeiro convite, e os homens, que, aí, sim, estão de acordo com o que o senhor afirma na carta do dia 14 de maio (“resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade”), optam pelas que dão menos trabalho para satisfazer instantaneamente seus desejos. Em suma, os homens estão sem paciência para convencer, e as mulheres, para serem convencidas. A conquista tem sido uma etapa cada vez mais queimada nos relacionamentos, o que talvez contribua para explicar a fragilidade e brevidade dos mesmos.

De que há exceções, não tenha dúvida. Mas, mesmo nestes casos há problemas. Parece-me que, uma vez encontrando-se diante de mulheres menos disponíveis, os homens julgam estar diante de divindades inatingíveis e, por isso, não ousam ultrapassar a linha do flerte, acreditando que jamais serão acolhidos por elas.

Portanto, meu caríssimo poeta, a mulher transformou-se sim, e esta transformação alterou profundamente a vivência do amor, mas, infelizmente, não do modo como o senhor previa.

Sunday, July 15, 2007

Os caprichos da inspiração

Embora o escasso número de comentários desminta esta informação, este blog é visitado regularmente por um seleto grupo de leitores que costumam reclamar da pouca freqüência com que o atualizo. De fato, não sou blogueira assídua. Tenho assunto de sobra para escrever, mas só isso – acreditava eu – não basta. É preciso inspiração para colocar tantos temas num discurso. Mas mudei de idéia. A inspiração é aquele tipo de amigo que sempre diz que “qualquer dia desses vai aparecer para tomarmos um café”. “Qualquer dia desses” é um dia que nunca chega. Ou quase nunca. Às vezes, o amigo até aparece, mas sempre em horas que ou são inoportunas, ou são breves demais para que possamos lhe dar a merecida atenção. Resolvi que, de agora em diante, vou tomar o café sozinha. Cansei de esperar. E é aí que surge a surpresa.

Quando sento ao computador e começo a escrever, assim, desacompanhada mesmo, sem a presença da amiga tratante, eis que ela surge de mansinho, e aos poucos, vai tomando conta do espaço. Quando a convidamos, ela sempre arranja uma desculpa para sua ausência, ou pior, diz que vai, mas nos deixa esperando. Porém, quando percebe que organizaram uma festa e a deixaram de fora, aí, sim, a inspiração aparece toda prosa, sem o menor constrangimento pela condição de penetra. A inspiração tem os seus caprichos.

Começo a escrever sobre qualquer tema, desgostosa com o estilo insípido, até que a madame aparece e começa a me soprar palavras e expressões que fazia tempo eu não empregava, e à medida que meus dedos vão digitando tais termos, estes vão me trazendo novas idéias não só referentes ao vocabulário, mas ao próprio tema. Em outras palavras, eu tenho um assunto, começo a escrever sobre ele sem saber exatamente que palavras utilizar, e, quando estas surgem, me levam a pensar sob outras perspectivas acerca do determinado assunto.

Confuso? Posso dar um exemplo: me propus agora a escrever sobre a inspiração, mas conforme fui escrevendo os parágrafos acima, já me foi ocorrendo a idéia de que, na verdade, não podemos esperar pela inspiração em nenhum aspecto da vida. Tudo o que precisamos é começar e nos envolver. Vivi isso este ano com uma turma de oitava série para a qual ensino Língua Portuguesa. A turma era danadíssima. Se eu deixasse, os alunos se pendurariam no ventilador do teto. Contudo, não podia desistir da turma – eu não me permitiria tomar uma atitude tão infantil quanto às deles. Fui propondo alguns ajustes, entre os quais apresentar atividades mais dinâmicas, em troca de eles se comprometerem mais com os estudos. Está dando certo. E hoje, acreditem, eu gosto daquelas pestes, a ponto de sentir saudade quando algum feriado cai justamente nos dias em que lhes dou aula. Não sei se eles estão tirando alguma lição comigo além da de ocorrência de crase, mas eu aprendi de modo mais maduro o fato de que, realmente, o amor é uma construção. Não nasce pronto. Exige empenho e paciência. Como se fosse um ser vivo, desenvolve-se no dia-a-dia e modifica-se ao longo do tempo. Às vezes não é mais o que já foi um dia, o que não quer dizer que tenha piorado.

Isso me faz lembrar um diálogo que tive com algumas alunas de outra turma, esta do segundo ano do ensino médio. Uma delas disse que odiou os primeiros capítulos de Memórias póstumas de Brás Cubas, mas que depois começou a gostar. Eu aproveitei a deixa para dizer a toda turma: “Levem isso para a vida de vocês: tudo o que é realmente bom, a gente nunca gosta no começo. Amores à primeira vista, daqueles que nos fazem sentir o coração acelerar e as pernas ficarem bambas, nunca fazem aniversário. Só vão para frente aqueles relacionamentos em que a gente investe só para ver qual é que é”. Todos concordaram.

Utilizei um exemplo próximo da realidade deles, mas poderia usar outros tantos. Eu custei a gostar de cerveja, de vinho seco, de Beatles e de fazer musculação. E os melhores livros que li na minha vida não me cativaram desde a primeira página. Precisamos desconfiar do que nos conquista logo de cara. É como um homem ou uma mulher sedutores: sim, te deixam de quatro no ato, mas não têm consistência para sustentar um relacionamento. Vejam a música pop: é uma delícia, gruda no ouvido. E é uma droga. Um amor de verão sem resistência suficiente para subir a serra.

Mas vim aqui para falar de inspiração, e acabei falando de outras coisas. É que a inspiração é assim mesmo: ela nunca gosta daquilo para o que a convidamos. Entretanto, basta que nos engajemos no processo para ela começar a se interessar – e, assim, a ajudar a tornar tudo mais interessante!

Sunday, July 01, 2007

O legado da nossa riqueza

Estou tendo que trabalhar com Memórias Póstumas de Brás Cubas com minhas turmas de segundo ano. Li este romance anos atrás e, de certa forma, o releio todos os anos, uma vez que tenho que ensiná-lo. Esta é justamente uma das maiores vantagens de se dar aulas de Literatura: tu te obrigas a reler as obras, e é incrível como a cada leitura fazemos uma interpretação diferente.

A mudança que percebi este ano tem relação com a famosa frase final do romance: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Foi uma excelente medida: Cubas poupou sua prole de ter um pai imbecil! E, muito embora não devamos confundir autor e personagem, o fato de Machado de Assis também não ter tido filhos me leva a pensar que ele concorda com sua criatura. Felizes também dos herdeiros de Machado que poderiam ter sido e não foram. Miséria?! Então é somente isso que a humanidade tem a transmitir? E a arte?! E a ciência?!

Brás Cubas era um chato! E Machado de Assis devia ser também! Odeio pessimistas! O pessimismo é a posição mais confortável para os acomodados: ela os isenta do esforço para mudar alguma coisa. E nem é preciso muito esforço para fazer a vida valer a pena: se Machado de Assis tivesse dançado ao som de Dancing Queen num salão com um globo de espelhos girando no centro do teto, jamais escreveria uma bobagem dessas!

Existem milhões de razões para se celebrar a vida. Milhões de pequenos momentos que por si só já teriam justificado nossa passagem na Terra. Posso enumerar os meus:

1) assistir a um espetáculo de ballet ao som do Bolero de Ravel. Eu tinha 8 anos de idade e, pelo que me lembro, foi a primeira vez em que senti êxtase, a primeira vez em que senti o que anos depois eu descobriria que Kant chamou de sublime. Aliás, o Bolero de Ravel sem coreografia já é sublime;

2) A propósito, há várias músicas que ouvidas uma única vez já seriam mais do que suficientes para morrermos felizes: Eleanor Rigby (ai, aquele coral de vozes!...), Come together (ai, aquela guitarra do refrão!...), Tomorrow never knows (AI, O SOLO INVERTIDO DA GUITARRA DO GEORGE HARRISON!!!), Miss you (alguém consegue escutar sua introdução sem pensar em sacanagem?!), Can’t been seen, Moonlight drive, Try a little tenderness, Don’t stop me now, The song remains the same... Vamos parar por aqui, senão a lista não terminará!;

3) Chorar de rir com meu amigos naqueles momentos em que me perguntei por que me mato tanto fazendo abdominais na academia, se é muito mais gostoso me matar de tanto gargalhar;

4) Perder o fôlego olhando o pôr-do-sol do Guaíba – há quem diga que há crepúsculos mais belos em outras paragens, mas como diz Fernando Pessoa, “O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia, porque ele não é o rio da minha aldeia...” ; ) – ao som de Insensatez no saxofone;

5) Beijar na boca;

6) Estar bem por baixo e, depois, encontrar-se bem por cima, olhar para trás e perceber que consegui superar o obstáculo tão aparentemente intransponível;

7) Dar colo ao meu sobrinho quando ele teve medo do tubarão do Procurando Nemo – a doce sensação de proteger...

8) ...e ter a dulcíssima sensação de ser protegida, é claro!

9) Sentir dor, prazer e beleza em doses extremas – a indescritível sensação de estar vivo...

10) A vida, em suma, é MARAVILHOSA, e eu quero, sim, transmitir a algumas criaturas o legado dessa riqueza, mostrar-lhes músicas, poemas, telas, pessoas, vinhos, cerveja, árvores, mares, e dizer-lhes: "olhem, meus filhos, isso tudo é de vocês!"

O engraçado é que eu nunca havia pensado nisso nas outras vezes em que li o romance em questão. Taí: reler livros e rever filmes são ótimos termômetros para mensurar nosso crescimento espiritual, já que o valor do objeto avaliado depende do valor de quem o avalia. Pode ser que tu vejas o mesmo filme centenas de vezes e não sintas nada de diferente. Mau sinal: não evoluíste! Reler um livro é mais ou menos como voltar à sala de aula em que cursamos a pré-escola. Nesta situação, sempre nos admiramos “Nossa, parecia tão grande naquela época!”. Mas não era. A sala continua a mesma. Nós é que crescemos. No caso da leitura, pensamos “Nossa, eu não lembrava que era tão bom!” Ou tão ruim, sei lá.

E não era.

Nós é que crescemos.

; )

Wednesday, May 30, 2007

Edição revista e ampliada das dores passadas

Dias atrás um amigo comentava que sua atual esposa tem ciúme mortal da mulher com quem ele esteve envolvido pouco antes de conhecê-la. Eu então lhe perguntei se esta mulher também não tinha ciúme em relação à moça com quem ele teve um romance logo após o fim de seu primeiro casamento. Ele, que nem havia percebido a coincidência, confirmou. De fato, aquela que hoje é motivo de ciúme também já esteve na posição de ciumenta. Definitivamente, este amigo vive se metendo nesta mesma situação: uma atual que morre de ciúme da ex. E é por isso que eu sempre digo: a tendência é repetir!

E tendemos a repetir porque o desejo é um filho da mãe! Quanto mais tentamos fugir dele, mais dele nos aproximamos. Damos de cara com ele na cozinha, e saímos em disparada em direção ao quarto, topando em todos os móveis, derrubando o abajur, batendo o dedinho do pé na perna da mesa, mas tão logo entramos no quarto e fechamos a porta, qual não é a nossa surpresa quando o vemos esplendidamente deitado na cama, com sorriso sarcástico e olhar astuto: o desejo! Este bandido!

Não adianta correr em direção oposta à dele. O desejo é onipresente. Está em todos os lugares, aproveitando todas as brechas para se manifestar. Às vezes as manifestações são discretas, mas outras são cheias de espalhafato, nos fazendo perder o controle. É como se ele dissesse: “isso é só para você ver quem é que manda!”. O desejo é um déspota!

Suponhamos que um rapaz tenha uma namorada cuja característica mais marcante seja a chatice. A moça é chata. Vive reclamando que ele é pobre, que seu carro tem design ultrapassado e faz um barulho constrangedor, que ele nunca a leva para jantar em restaurantes bacanas, e que ela já está cansada de enterrar o seu verão em uma casa desconfortável em Noiva do Mar. “Ninguém merece Noiva do Mar”, é o que ela sempre diz. Em suma, chata.

O cara enche o saco e resolve mudar de vida. Larga a moça e jura para si que de agora em diante só vai se envolver com mulheres independentes, que tenham seu próprio dinheiro, que não lhe exijam despesas astronômicas. “Quer jantar em restaurante caro, pague você, eu não tenho dinheiro!” E como quem procura, acha, o cara encontra exatamente uma mulher como esta. É tudo o que ele sempre quis desde que se livrou daquela mala. A atual quer sempre se vestir bem, dirigir bons carros e freqüentar os melhores restaurantes da cidade, mas ela faz isso com seu próprio dinheiro. E o que é melhor: acha isso o máximo. Detestaria depender de homem. Ela enche a boca para dizer que tudo o que ela tem, tem com o suor do próprio rostinho.

Mas com o tempo ela começa a se incomodar com o modo como ele se veste, com seu corte de cabelo e até com alguns de seus deslizes na norma culta da língua portuguesa. E uma mulher incomodada é uma mulher incômoda. Em pouco tempo, ela já está diariamente lhe apontando – ou criando – defeitos. Bingo! O cara está com outra chata. Coincidência? Carma? Destino? Não, desejo! O desejo sempre nos faz ler as mesas histórias, só que em reedições dramaticamente revistas e ampliadas. No caso do personagem em questão, por alguma razão, ele gosta de mulheres que passem o tempo todo lhe fazendo cobranças. Ele se aborrece, é verdade, mas nem se dá conta de que na verdade seu gozo está justamente neste aborrecer-se, nesta angústia de não corresponder às expectativas da amada. O seu desejo é ficar devendo. O desejo, este tirano!

Não adianta se rebelar contra o desejo. A rebeldia só machuca – como quando se corre da cozinha para o quarto. Debater-se contra o desejo é inútil – sem contar que resulta em cenas patéticas. Mas podemos negociar com o desejo. É possível deixar de ser seu escravo. Mas essa negociação é longa e dolorosa – o desejo é um osso duro de roer! Ele exige muita paciência – e diplomacia. Mas o processo de dominá-lo também pode ser fascinante. Depois de tanto se alfinetar com ele, não há nada melhor do que mostrar-lhe quem, afinal, é que manda!

Sunday, May 20, 2007

Prazer doloroso

Cada um com suas esquisitices: às vezes, eu tenho saudade de algumas passagens de romances, contos ou poemas que já li. Estava agora mesmo ouvindo uma música lindíssima da Barbara Lewis, Hello stranger, que fez eu correr para minha estante de livros e procurar uma passagem de Vida e época de Michael K, do sul-africano JM Coetzee (a vantagem de se ter os livros em casa, ao invés de pegá-los emprestados de amigos ou bibliotecas). Não foi difícil encontrar a passagem, pois tenho com meus livros favoritos a mesma intimidade que tenho com as pessoas por quem nutro grande estima. E a passagem estava sublinhada. Sinal de que eu já tinha gostado dela quando li a obra quatro anos atrás.

A passagem se refere ao momento em que o protagonista, depois de um longo período comendo grama, e às vezes passando fome mesmo, come a primeira fatia de abóbora que plantou em uma fazenda abandonada:

“Levou a primeira fatia até a boca. Debaixo da pele crocante e torrada, a carne era macia e suculenta. Mastigou com lágrimas de alegria nos olhos. A melhor, pensou, a melhor abóbora que eu comi na vida. Pela primeira vez, desde que voltara para o campo, teve prazer com a comida. O sabor da primeira fatia deixou sua boca dolorosa de prazer sensual”

Dolorosa de prazer sensual. Foi mais precisamente esta expressão que fez com que eu lembrasse da passagem escutando Barbara Lewis. Sua voz, ao menos na canção mencionada, deixa meus ouvidos dolorosos de prazer sensual. Seu timbre e melodia são tão delicada e sofisticadamente belos, que cada segundo passado da canção me causa prazer, mas também tristeza, porque é um segundo a menos, um passo a mais rumo ao fim.

Isso me lembra aquele meu post sobre A felicidade clandestina, da Clarice Lispector. De novo volto a falar sobre o preço exigido pelo que é bom para que o apreciemos. É preciso muita coragem para desfrutarmos da felicidade, muita maturidade para sabermos lidar com a tristeza de quando ela acabar – a parte dolorosa do prazer.

Palavra final

Resolvi fazer para mim mesma as perguntas da seção Palavra Final, da revista Época:

O que não vale a pena?
Discutir com gente burra.

Maior mentira que já contou...
Não lembro de nenhuma grande mentira que eu tenha contado.

Um lugar especial na Terra...
Minha casa, sem dúvida!
E a praia de Santo Antônio de Lisboa, em Florianópolis.

Uma mulher interessante...
Quase todas, com poucas exceções.

Um homem interessante...
Oscar Niemeyer,
O meu amigo Cleber

Qual é o seu lema?
Mesmo nas piores situações há pontos de que se pode tirar proveito.

Um dia perfeito...
Um dia de sol em que eu consiga fazer tudo o que eu tenha planejado no dia anterior.

Sua qualidade mais marcante...
A minha disposição para ouvir, talvez.

De quem você tem inveja?
No momento, de ninguém.

Na pele de quem você gostaria de passar um dia?
De uma águia, para voar, voar, voar...

Quem é a pessoa viva que você mais admira?
No momento, minha colega Valéria. Ela tem 58 horas-aula por semana, planeja aulas criativas, faz exercícios físicos regularmente e ainda é boa mãe: sou professora do filho mais velho dela e posso afirmar que o garoto é ótimo!

Sua maior extravagância...
Fazer terapia.

Qual é o seu preço?
Eu não tenho preço, mas a minha hora-aula particular tem. É baratinho, deixa um comentário, podemos negociar!

De que você tem orgulho?
De já estar completando dois anos no meu emprego! Da relação que tenho com meus alunos. De um dia em que um aluno que era líder de turma resistiu a participar de uma reunião só porque ela aconteceria bem na hora da minha aula (disso eu vou lembrar até no meu leito de morte!).

De que você mais sente falta?
No momento, de dinheiro! Ainda bem que é disso. Podia ser de algo ainda mais imprescindível, como saúde ou ânimo.

Para você, o que é felicidade?
O próprio processo de construção da felicidade, que vem a ser a busca por preencher algumas lacunas. Sem lacuna, ninguém é feliz. É morto.

O que você compra sempre?
Comida. Não sou consumista.

Se ganhasse poderes sobrenaturais por um dia, qual seria sua primeira ação?
Ficar com um corpão, hahaha!

O que você gostaria de ouvir de Deus ao chegar ao céu?
Pode voltar lá e aproveitar mais uns minutinhos.

Thursday, April 26, 2007

Iceberg



O que é isto?
Um iceberg
Diriam os céticos
Uma fotografia de um iceberg
Diriam os puristas
Uma metáfora,
Diria eu,
Da obra de arte
Do amor
Do ódio
Da inveja
Do ciúme
Do desejo de agradar
Do medo da rejeição
Da sua auto-sabotagem
Da sua vontade de desistir justo agora que está tão perto de alcançar
Do seu desinteresse pelo que conseguiu alcançar depois de almejar tanto
Da sua coragem
Da sua determinação de aço
Dessa generosidade incomum
De tanta magnanimidade
Desse interesse repentino pelo que até ontem era indiferente
Do seu consumismo
Da sua avareza
Da sua preguiça
Da sua gula
Da sua gordura
Da sua obsessão por ficar belo
Da sua curiosidade
Da sua elegância
Do seu vocabulário chulo
Dos seus hábitos bizarros
Do seu desejo por quem não deveria desejar
Da sua atração irresistível justamente pelo que mais lhe causa repulsa

Da religião
Da ciência
Da política
Do racismo
Do machismo
Do feminismo
Da social-democracia
Do preço da gasolina
Do estado das coisas

E, é claro,
Sobretudo
De ti,
Dele,
Deles,
De mim.

Conversa de botequim


Dias atrás, numa edição já passada do jornal Zero Hora que me caiu nas mãos, li a coluna da Martha Medeiros. Dizia ela que queria participar do Big Brother, e em seguida enumerava suas razões, entre as quais ficar isolada dos problemas do mundo, sem telefone, televisão, internet, notícias indigestas, etc, e conviver com um bando de descerebrados. Para ela, todos os participantes são descerebrados. E têm a favor de si a grande vantagem de não saber quem é João Hélio, de quem só terão conhecimento daqui um ano, quando lerem uma notinha acerca do aniversário funesto no jornal, se é que lêem jornal, “me permitam o otimismo”. Foi o que ela escreveu: “me permitam o otimismo”.

A insinuação de que ela considera pouco inteligentes os participantes deste programa me parece clara. E, posso estar errada, mas quando ela os chama de descerebrados, me parece que, a seu ver, ela, sim, é cerebrada. Ou seja, ela é inteligente, eles são burros. Simples assim.

A pergunta que não quer calar é: qual será o conceito de inteligência da “inteligente” Martha Medeiros? A impressão que dá é que, para ela, ser inteligente é ter aquele tradicional hábito de pensar como homem, rico, branco, judaico-cristão e ocidental. Qualquer pensamento inclinado ao modo oriental, não-cristão, não-branco, pobre e feminino não é um pensamento diferente, é um pensamento burro. Logo, os big brothers só seriam considerados inteligentes se discutissem aquilo que o establishment julga ser inteligente. Mas eles não discutem. E nem devem conhecer Martha Medeiros. Se me permitem o otimismo.

Martha Medeiros é típica intelectual de classe média brasileira, que pensa como todo o mundo da sua classe e cor pensa. Mas o mundo não é só a classe média, dona Martha! Nem só o Moinhos de Vento. Existe muito mais para além das fronteiras dos bairros elegantes da provinciana Porto Alegre. Existe um público que lê Diário Gaúcho, que aliás pertence ao mesmo grupo do jornal para o qual a senhora escreve os seus textos cerebrados. E não há um motivo sequer que permita que eu, a senhora ou qualquer outro “cerebrado” que lê Shakespeare e assiste a Fellini nos consideremos superiores a tal público. E sabe por quê? Porque toda o nosso conhecimento de Shakespeare e Fellini não conseguiu impedir a morte de João Hélio, para citar o mesmo episódio a que a senhora recorre na sua coluna.

Nossa erudição não serviu para nada. E não tem de servir mesmo. Ela não é uma ferramenta para ter um uso. Ela é apenas a expressão de um ponto de vista, assim como a preferência de alguns pelo Diário Gaúcho é a expressão de outro. Os programas favoritos desse público não acrescentam nada à nossa cultura, é o que dizem seus detratores. Mas os nossos, também não! Assistir a uma entrevista com Chico Buarque é um deleite, porque ele diz coisas inteligentes. Mas isso não muda nada. No dia seguinte, vão continuar incendiando ônibus.

Quer saber um exemplo de alguém que realmente acrescentou alguma coisa à nossa cultura? Rosa Parks. Um dia, um homem branco entrou num coletivo e, como era praxe entre os brancos na época, pediu à negra Rosa que se levantasse para dar lugar a ele. Rosa olhou para ele e voltou a cabeça para a janela. Não levantou. Criou celeuma. Talvez não no mesmo dia, talvez não naquela semana, mas graças a Rosa, os negros americanos não precisaram mais passar pela humilhação de ter de se levantar para dar lugar a um branco. Rosa era mulher, pobre e negra. Não preenchia mais da metade daqueles cinco requisitos básicos para ser considerada inteligente no mundo ocidental. Mas ela, sim, mudou alguma coisa, e sem dizer uma palavra, muito menos de um vocabulário erudito! Isto provoca mudanças: gestos! O resto é conversa de botequim!

Sunday, April 22, 2007

Recuo

Esses passos para trás
não são um retrocesso.
São apenas
o recuo
necessário
para o impulso
para o grande salto

O costume suspenso pela arte


Ontem fui ao cinema assistir ao documentário A vida é um sopro, sobre Oscar Niemeyer. Não é bem como eu esperava. O filme não conta a vida do arquiteto, não menciona nada ou quase nada sobre sua infância e adolescência, sobre sua vida pessoal, em suma. Isso, no entanto, não torna menos interessante a obra, que privilegia o trabalho de Niemeyer e suas opiniões sobre assuntos diversos.

Das sete artes, a arquitetura seja talvez aquela sobre a qual eu menos conheço. Na verdade, sempre a entendi como arte pelo modo com que expressa traços de uma cultura ou época. Niemeyer alargou minha visão. E foi isso o que mais me chamou a atenção no documentário: a apresentação de obras arquitetônicas como obras de arte que, a exemplo de qualquer outra, surpreendem e encantam olhos viciados na mesmice da paisagem de todos os dias.

Aliás, esse foi um dos principais objetivos do arquiteto em todas as suas obras: fazer diferente. A palavra “diferente” é dita várias vezes por ele ao longo do documentário. E parece ser repetida em seu discurso diário. Estas palavras, atribuídas a ele, tirei do site www.niemeyer.org.br:

"... Quando projetei o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, exigindo na praça um rebaixamento de quatro metros, o fiz para protegê-la melhor dos ventos e do frio, tornando-a visível de cima pelos que a volta dela passavam. Uma característica que a faz diferente de todas as outras da Europa." (grifo meu).

O curioso é que ele não fez diferente apenas na arquitetura. O fez também no próprio modo de falar. Observem o fragmento da sua fala: “...visível de cima pelos que a volta dela passavam”. A ordem mais usual, a direta, seria “visível de cima pelos que passavam a volta dela”. Niemeyer inverte as posições do verbo e do adjunto adverbial, criando um efeito, lá vem a palavrinha de novo, diferente. Em que esta inversão lhe altera o sentido? Isto varia de acordo com a visão de cada um. A mim parece que ele enfatiza a própria praça em detrimento do movimento dos transeuntes. Mas isso, agora, é o que menos me interessa. Mais importante é que, ainda que não alterasse em nada o sentido da frase, a inversão da forma soa nova aos ouvidos – pelo menos aos mais sensíveis – e mostra que é possível inovar com ações muito simples, nem que seja apenas para criar uma descontinuidade na rotina.

Muita gente fala mal da rotina. Eu confesso que adoro rotina, mas também gosto de sair dela de vez em quando. E como se sai dela? Através de algo que lhe faça total contraste. Às vezes temos a impressão de que ficamos dois meses de férias, quando tudo o que fizemos foi fazer algo completamente atípico durante um único fim de semana.

Para mim, apreciar uma obra de arte causa este mesmo efeito. O espanto que ela provoca é uma suspensão do hábito.

É que narciso acha feio o que não é espelho...



Ah, ser professora! Melhor: ser professora de alunos inteligentes, como são os meus!

Para trabalhar sobre o Surrealismo no terceiro ano, interpretei com a turma as telas Cisnes refletindo elefantes, de Dalí, e A clarividência, de René Magritte. Por fim, pedi a eles que analisassem sozinhos a tela Attempting to impossible, do mesmo pintor belga. Fiquei maravilhada com as observações por eles feitas! Chamaram minha atenção para detalhes que eu nunca havia percebido – a conveniência de trocar impressões!...

Na obra, eu só havia conseguido enxergar o individualismo do homem que cria uma mulher segundo os seus caprichos, conforme a sua idealização do que seja uma mulher perfeita, ignorando, portanto, a riqueza de se conviver com a imperfeição dos feitos de carne e osso. Mas meus alunos me fizeram ver mais.

Uma dupla de alunos observou a expressão séria do criador e da criatura. Eu nunca tinha atentado para isso. Sim, estão sérios os dois. Como não poderiam deixar de estar, penso eu, pois que alegria e vivacidade pode ter alguém pretensioso a ponto de inventar para si uma companhia, como se todo o resto do mundo não fosse suficiente? E o que se pode esperar de alguém que é criado por um criador com tal espírito?

Outra dupla ponderou que a criatura tem traços físicos semelhantes aos do criador. É verdade! Tem mesmo! E tal apontamento enriquece a leitura – e confirma a prepotência do artista. Quer dizer então que a perfeição só é possível tendo semelhanças com ele?

Isso me faz lembrar aquele verso de Caetano Veloso, de que gosto muito – “É que narciso acha feio o que não é espelho...”, e aquele poema de Ricardo Reis, Ninguém a outro ama:

Ninguém a Outro Ama

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.


Há quem diga que nos apaixonamos por pessoas que têm características que não encontramos em nós, buscando uma complementaridade. Bobagem! O que nos fascina nos outros é o que eles têm de semelhante a nós. E, às vezes, disfarçamos nossa pretensão com traje diametralmente oposto. Mas é só um disfarce, e um disfarce que cai tão logo a convivência faça as diferenças salientarem-se. Então a queda do véu revela o que o outro realmente é: um estrangeiro. E nós todos sofremos de xenofobia. Mal conseguimos suportar o que há de estrangeiro em nós mesmos, olhamos com expressão nauseabunda para a distorção entre o que somos e a imagem que construímos do que somos. Porque haveríamos de suportar no outro?

O melhor do poema, entretanto, é o consolo que nos dá por não sermos amados. Os que não nos amam não têm nada contra nós. Apenas percebem o abismo que nos separa deles, e é custoso amar quem está longe.

Mais custoso ainda é amarmos a nós mesmos quando tomamos uma distância de nós, confiantes de que não esqueceríamos o caminho de volta. Esquecemos o caminho de volta. Perdemos o ponto de referência. Temos uma vaga lembrança de como ele seja, mas não conseguimos chegar até ele. Nem ir adiante, construir um novo caminho. Não conseguimos partir tendo esta sensação de estar deixando algo para trás.

Não recuamos, porque nos falta a bússola. Não avançamos, porque nos falta coragem. Ficamos estáticos. Nos resta aprendermos a sermos mais generosos com nosso estrangeiro. Aceitar que somos o que aprendemos – ou inventamos – que era feio ser.

Sunday, April 01, 2007

Os pseudo-intelectuais contra o Big Brother

É o que eu costumo dizer: pior que alguém sem espírito crítico algum, é alguém sem espírito crítico algum que acredita tê-lo. O segundo tipo existe em número bem menor do que o primeiro, mas já começa a se proliferar, manifestando suas opiniões enlatadas em discursos gastos pelo uso e repletos de lugares-comuns.

Recebi por e-mail semanas atrás uma mensagem que, aparentemente, pretendia fazer o leitor “refletir” sobre a mediocridade do povo brasileiro a partir do gosto deste pelo programa Big Brother Brasil. E como, sabe-se lá por quê, de uns tempos para cá “refletir” virou sinônimo de falar mal, dizia a mensagem que, se 29 milhões de pessoas ligam para eliminar um “bobão” ou uma “bobona” (palavras do autor) a cada paredão, e se cada ligação custa hipotéticos R$ 0,30, isso significa que a Rede Globo e a operadora do 0300, em caso de terem feito um acordo de divisão igual do valor arrecadado, embolsarão semanalmente, cada uma, a quantia de R$ 4,35 milhões. Feito este raciocínio, o autor – que, creio eu, considera-se crítico – abusa do senso comum: escreve que é um absurdo o trabalhador gastar tanto dinheiro com um programa que nada acrescenta à sua formação (ao invés de investi-lo em livros de literatura e filosofia que o fariam exercitar sua autocrítica); que quem paga esta fortuna para votar em quem deve sair do programa não sabe em quem votou na última eleição; que os participantes do programa não têm cultura nem vocabulário básico, enfim, aquele blábláblá batido de pseudo-intelectual.

Alguns argumentos são tão rasos que chega a dar preguiça de contrariar. Em primeiro lugar, não é em toda semana que há 29 milhões de ligações, aliás, 29 milhões de votos não significam o mesmo número de ligações: pode-se votar – gratuitamente – pela Internet. Em segundo, a quantia assombrosa apontada pelo autor é, como ele próprio afirma, a soma arrecadada. Se algum telespectador votar em todos os paredões, ao final do programa ele terá gasto cerca de R$ 3,00. Nem a literatura e a filosofia mais baratas custam isso. Ontem mesmo paguei o dobro deste valor por uma edição de bolso usada de Hamlet. Em terceiro, o argumento de que o programa não acrescenta nada à formação do público é totalmente inválido. Digamos que a afirmação seja verdadeira. Não vejo razão para que isso sirva de base para classificá-lo como inútil. Os torcedores também empregam fortunas para assistir a jogos de futebol – nos estádios ou em canais de pay-per-view – que também nada acrescentam às suas faculdades intelectuais. E não vejo mal nenhum nisso. Tanto a proposta do Big Brother quanto a do futebol são outra: divertir. Em quarto lugar, o autor da mensagem utiliza o termo “cultura” equivocadamente. Não existe ser humano sem cultura. O que existe é variação cultural. O autor poderia, no máximo, afirmar que os participantes não são eruditos, nunca que eles são incultos. E em quinto, há, sim, participantes inteligentes em todos as edições do programa. Alguns se destacam pela habilidade nas relações interpessoais, outros, no planejamento estratégico do jogo, e outros, para a surpresa do autor, no uso correto do português. Eu mesma já testemunhei uma sister corrigindo os erros de concordância nominal – e utilizando exata e corretamente esta nomenclatura – de uma colega.

Porém, de todos as idéias veiculadas pela mensagem, a que me parece ser a mais superficial é a de que o Big Brother Brasil faz sucesso porque o público é, digamos assim, pouco dotado intelectualmente. Tenho outra teoria: a de que este programa tenha uma função simbólica. O ponto mais evidente é a recorrente vitória de membros de minorias da sociedade, como pobres e homossexuais. Finalmente se pode assistir a alguém humilde e justo vencer na vida, desejo de todo cidadão brasileiro! Mas há ainda outros aspectos. O Big Brother é o único espaço em que o brasileiro tem reais condições de avaliar quem é honesto ou não, para poder premiar os primeiros e banir os últimos (a quem contra-argumentar que as edições da emissora são tendenciosas, sugiro voltar algumas linhas neste texto e reler a palavra “simbólica”). É a única oportunidade em que o brasileiro pode fazer e refazer esta avaliação semanalmente, e expulsar quase que imediatamente quem traiu sua confiança. Em nenhum outro caso, acredito, o brasileiro testemunha, julga, condena e pune os fisiologistas. Deve ser por isso que quem paga para votar no Big Brother não lembra em quem votou de graça em Brasília. Aliás, Brasília deveria se inspirar em alguns detalhes do programa. Substituir os salários astronômicos pelo regime de estalecas, por exemplo. Liderança na câmara? Prova de resistência (moral, é claro) neles! E, como não poderia deixar de ser, as câmeras e microfones por todos os lados, vigiando e delatando ininterruptamente. Com uma eliminação por semana, para excluir os imorais ou, no mínimo, aqueles que não comparecem às sessões e, por isso, acabam não fazendo diferença.

Não quero dizer com tudo isso que o programa em questão não tenha pontos negativos, mas apenas que os pontos que a mensagem levanta como tal são imediatistas. Ser crítico não é falar mal das coisas, mas se perguntar por que elas são do jeito que são. Sempre há uma razão – no mínimo! E não existe produto cultural que nada acrescente àqueles que dele desfrutam. Se estes realmente tiverem espírito crítico, terão a oportunidade de exercitá-lo não importa diante do quê. O olhar que se dirige ao objeto é muito mais relevante que o próprio objeto. Pensar que “se está na Globo, e o povo gosta, certamente é porque é ruim” é o extremo oposto da crítica consciente: é preconceito, idéia preconcebida, pseudo-intelectualidade. Pro paredão com tudo isso!