Saturday, July 21, 2007

Cartas a um velho poeta


Meu caro senhor Rilke,

Estou há tempos lendo, gradativamente, as cartas que enviaste ao jovem poeta Kappus; e as leio em doses homeopáticas porque creio que, como um cálice de bom vinho, devem ser sorvidas aos poucos, para que eu assimile o quanto possa a sabedoria de que o senhor as impregna.

Não posso me furtar, no entanto, de lhe trazer más novas referentes à carta que escreveste em 14 de maio de 1904, quando se encontrava em Roma. Lamento muito, senhor Rilke – e não entenda este lamento como mera figura de retórica, mas como puro sentimento de alguém que se sente profundamente atingida pelo estado das coisas que a seguir vou lhe descrever –, mas suas previsões com relação à mulher e ao amor foram parcialmente equivocadas. E o pior é que o que deu de errado parece que não poderia ter saído pior.

De fato, conforme o senhor profetizou, a mulher conseguiu se desvencilhar de muitas “convenções do exclusivamente feminino”, como o senhor escreve. Porém, esta libertação resultou de uma migração às “convenções do exclusivamente masculino”, se me permite parafraseá-lo, o que, a meu ver, não me parece uma solução, mas a configuração de um novo problema cheio de dramáticos – se não trágicos – desdobramentos.

Se o senhor acreditava, no início do século passado, que a mulher se submetia a sucessivos e ridículos disfarces para purificar sua própria essência das influências deformadoras do sexo masculino, qual não seria sua perplexidade se a visse hoje?! A mulher se deixou deformar mais do que jamais havia permitido em sua época, senhor Rilke. Ela continua passando batom, usando brincos, caminhando sobre sapatos de salto alto e, depois de um período de suspensão cuja duração não posso precisar agora, até voltou a vestir saias. Entretanto, o que se observa é um descompasso entre forma e conteúdo. As mulheres, senhor Rilke, masculinizaram-se. Muitas têm, por exemplo, renunciado à maternidade, e outras tantas que não o fizeram parecem ter tido filhos apenas para cumprir um dever social, recusando-se a dar à luz por parto normal, a amamentar e a outras tarefas próprias do metier. Elementos que antes eram considerados parte de um processo natural são agora evitados ao máximo.

Não as culpo completamente. Há de se levar em consideração o fato de que as últimas gerações de mulheres têm mesmo aprendido que ser homem é melhor do que ser mulher. Desde cedo as menininhas escutam que menstruar, engravidar, parir e amamentar são desvantagens da condição feminina, e o senhor certamente concordará que o que se escuta cedo dificilmente deixa de ecoar até muito tarde. Incutem-lhes a idéia de que ser um desbravador como Ulisses é muito melhor do que esperar como Penélope, como se despertar ao raiar do sol e atravessar o dia até depois do crepúsculo sob a pele de uma mulher não fosse por si só uma odisséia esplêndida em terreno muito acidentado. O senhor compreenderá que quem lhes transmite tais pensamentos são pessoas como as que o senhor descreve na carta do dia 17 de fevereiro, ignorantes demais para perceberem o universo que há dentro de si mesmas.

Também as atitudes da mulher com respeito ao sexo mudaram. Dou-lhes razão no que se refere à sua liberdade de experimentar as sensações que seus corpos podem lhes proporcionar. O problema, senhor Rilke, é que a excessiva disponibilidade das mulheres tornou os homens menos viris. Ao receber uma negativa, o homem não insiste. Não sei o que passa por sua cabeça. Talvez ele pense que ela esteja fingindo desinteresse – e talvez ela esteja mesmo, porque outra coisa que as mulheres ouvem desde cedo é que homens apreciam mulheres difíceis, verdade da qual começo a desconfiar. E talvez ela esteja mesmo desinteressada. Pois, então, o natural seria que ele tentasse fazê-la se interessar! Qual o quê, senhor Rilke?! Há outros milhões de mulheres dizendo “sim” ao primeiro convite, e os homens, que, aí, sim, estão de acordo com o que o senhor afirma na carta do dia 14 de maio (“resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade”), optam pelas que dão menos trabalho para satisfazer instantaneamente seus desejos. Em suma, os homens estão sem paciência para convencer, e as mulheres, para serem convencidas. A conquista tem sido uma etapa cada vez mais queimada nos relacionamentos, o que talvez contribua para explicar a fragilidade e brevidade dos mesmos.

De que há exceções, não tenha dúvida. Mas, mesmo nestes casos há problemas. Parece-me que, uma vez encontrando-se diante de mulheres menos disponíveis, os homens julgam estar diante de divindades inatingíveis e, por isso, não ousam ultrapassar a linha do flerte, acreditando que jamais serão acolhidos por elas.

Portanto, meu caríssimo poeta, a mulher transformou-se sim, e esta transformação alterou profundamente a vivência do amor, mas, infelizmente, não do modo como o senhor previa.

Sunday, July 15, 2007

Os caprichos da inspiração

Embora o escasso número de comentários desminta esta informação, este blog é visitado regularmente por um seleto grupo de leitores que costumam reclamar da pouca freqüência com que o atualizo. De fato, não sou blogueira assídua. Tenho assunto de sobra para escrever, mas só isso – acreditava eu – não basta. É preciso inspiração para colocar tantos temas num discurso. Mas mudei de idéia. A inspiração é aquele tipo de amigo que sempre diz que “qualquer dia desses vai aparecer para tomarmos um café”. “Qualquer dia desses” é um dia que nunca chega. Ou quase nunca. Às vezes, o amigo até aparece, mas sempre em horas que ou são inoportunas, ou são breves demais para que possamos lhe dar a merecida atenção. Resolvi que, de agora em diante, vou tomar o café sozinha. Cansei de esperar. E é aí que surge a surpresa.

Quando sento ao computador e começo a escrever, assim, desacompanhada mesmo, sem a presença da amiga tratante, eis que ela surge de mansinho, e aos poucos, vai tomando conta do espaço. Quando a convidamos, ela sempre arranja uma desculpa para sua ausência, ou pior, diz que vai, mas nos deixa esperando. Porém, quando percebe que organizaram uma festa e a deixaram de fora, aí, sim, a inspiração aparece toda prosa, sem o menor constrangimento pela condição de penetra. A inspiração tem os seus caprichos.

Começo a escrever sobre qualquer tema, desgostosa com o estilo insípido, até que a madame aparece e começa a me soprar palavras e expressões que fazia tempo eu não empregava, e à medida que meus dedos vão digitando tais termos, estes vão me trazendo novas idéias não só referentes ao vocabulário, mas ao próprio tema. Em outras palavras, eu tenho um assunto, começo a escrever sobre ele sem saber exatamente que palavras utilizar, e, quando estas surgem, me levam a pensar sob outras perspectivas acerca do determinado assunto.

Confuso? Posso dar um exemplo: me propus agora a escrever sobre a inspiração, mas conforme fui escrevendo os parágrafos acima, já me foi ocorrendo a idéia de que, na verdade, não podemos esperar pela inspiração em nenhum aspecto da vida. Tudo o que precisamos é começar e nos envolver. Vivi isso este ano com uma turma de oitava série para a qual ensino Língua Portuguesa. A turma era danadíssima. Se eu deixasse, os alunos se pendurariam no ventilador do teto. Contudo, não podia desistir da turma – eu não me permitiria tomar uma atitude tão infantil quanto às deles. Fui propondo alguns ajustes, entre os quais apresentar atividades mais dinâmicas, em troca de eles se comprometerem mais com os estudos. Está dando certo. E hoje, acreditem, eu gosto daquelas pestes, a ponto de sentir saudade quando algum feriado cai justamente nos dias em que lhes dou aula. Não sei se eles estão tirando alguma lição comigo além da de ocorrência de crase, mas eu aprendi de modo mais maduro o fato de que, realmente, o amor é uma construção. Não nasce pronto. Exige empenho e paciência. Como se fosse um ser vivo, desenvolve-se no dia-a-dia e modifica-se ao longo do tempo. Às vezes não é mais o que já foi um dia, o que não quer dizer que tenha piorado.

Isso me faz lembrar um diálogo que tive com algumas alunas de outra turma, esta do segundo ano do ensino médio. Uma delas disse que odiou os primeiros capítulos de Memórias póstumas de Brás Cubas, mas que depois começou a gostar. Eu aproveitei a deixa para dizer a toda turma: “Levem isso para a vida de vocês: tudo o que é realmente bom, a gente nunca gosta no começo. Amores à primeira vista, daqueles que nos fazem sentir o coração acelerar e as pernas ficarem bambas, nunca fazem aniversário. Só vão para frente aqueles relacionamentos em que a gente investe só para ver qual é que é”. Todos concordaram.

Utilizei um exemplo próximo da realidade deles, mas poderia usar outros tantos. Eu custei a gostar de cerveja, de vinho seco, de Beatles e de fazer musculação. E os melhores livros que li na minha vida não me cativaram desde a primeira página. Precisamos desconfiar do que nos conquista logo de cara. É como um homem ou uma mulher sedutores: sim, te deixam de quatro no ato, mas não têm consistência para sustentar um relacionamento. Vejam a música pop: é uma delícia, gruda no ouvido. E é uma droga. Um amor de verão sem resistência suficiente para subir a serra.

Mas vim aqui para falar de inspiração, e acabei falando de outras coisas. É que a inspiração é assim mesmo: ela nunca gosta daquilo para o que a convidamos. Entretanto, basta que nos engajemos no processo para ela começar a se interessar – e, assim, a ajudar a tornar tudo mais interessante!

Sunday, July 01, 2007

O legado da nossa riqueza

Estou tendo que trabalhar com Memórias Póstumas de Brás Cubas com minhas turmas de segundo ano. Li este romance anos atrás e, de certa forma, o releio todos os anos, uma vez que tenho que ensiná-lo. Esta é justamente uma das maiores vantagens de se dar aulas de Literatura: tu te obrigas a reler as obras, e é incrível como a cada leitura fazemos uma interpretação diferente.

A mudança que percebi este ano tem relação com a famosa frase final do romance: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Foi uma excelente medida: Cubas poupou sua prole de ter um pai imbecil! E, muito embora não devamos confundir autor e personagem, o fato de Machado de Assis também não ter tido filhos me leva a pensar que ele concorda com sua criatura. Felizes também dos herdeiros de Machado que poderiam ter sido e não foram. Miséria?! Então é somente isso que a humanidade tem a transmitir? E a arte?! E a ciência?!

Brás Cubas era um chato! E Machado de Assis devia ser também! Odeio pessimistas! O pessimismo é a posição mais confortável para os acomodados: ela os isenta do esforço para mudar alguma coisa. E nem é preciso muito esforço para fazer a vida valer a pena: se Machado de Assis tivesse dançado ao som de Dancing Queen num salão com um globo de espelhos girando no centro do teto, jamais escreveria uma bobagem dessas!

Existem milhões de razões para se celebrar a vida. Milhões de pequenos momentos que por si só já teriam justificado nossa passagem na Terra. Posso enumerar os meus:

1) assistir a um espetáculo de ballet ao som do Bolero de Ravel. Eu tinha 8 anos de idade e, pelo que me lembro, foi a primeira vez em que senti êxtase, a primeira vez em que senti o que anos depois eu descobriria que Kant chamou de sublime. Aliás, o Bolero de Ravel sem coreografia já é sublime;

2) A propósito, há várias músicas que ouvidas uma única vez já seriam mais do que suficientes para morrermos felizes: Eleanor Rigby (ai, aquele coral de vozes!...), Come together (ai, aquela guitarra do refrão!...), Tomorrow never knows (AI, O SOLO INVERTIDO DA GUITARRA DO GEORGE HARRISON!!!), Miss you (alguém consegue escutar sua introdução sem pensar em sacanagem?!), Can’t been seen, Moonlight drive, Try a little tenderness, Don’t stop me now, The song remains the same... Vamos parar por aqui, senão a lista não terminará!;

3) Chorar de rir com meu amigos naqueles momentos em que me perguntei por que me mato tanto fazendo abdominais na academia, se é muito mais gostoso me matar de tanto gargalhar;

4) Perder o fôlego olhando o pôr-do-sol do Guaíba – há quem diga que há crepúsculos mais belos em outras paragens, mas como diz Fernando Pessoa, “O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia, porque ele não é o rio da minha aldeia...” ; ) – ao som de Insensatez no saxofone;

5) Beijar na boca;

6) Estar bem por baixo e, depois, encontrar-se bem por cima, olhar para trás e perceber que consegui superar o obstáculo tão aparentemente intransponível;

7) Dar colo ao meu sobrinho quando ele teve medo do tubarão do Procurando Nemo – a doce sensação de proteger...

8) ...e ter a dulcíssima sensação de ser protegida, é claro!

9) Sentir dor, prazer e beleza em doses extremas – a indescritível sensação de estar vivo...

10) A vida, em suma, é MARAVILHOSA, e eu quero, sim, transmitir a algumas criaturas o legado dessa riqueza, mostrar-lhes músicas, poemas, telas, pessoas, vinhos, cerveja, árvores, mares, e dizer-lhes: "olhem, meus filhos, isso tudo é de vocês!"

O engraçado é que eu nunca havia pensado nisso nas outras vezes em que li o romance em questão. Taí: reler livros e rever filmes são ótimos termômetros para mensurar nosso crescimento espiritual, já que o valor do objeto avaliado depende do valor de quem o avalia. Pode ser que tu vejas o mesmo filme centenas de vezes e não sintas nada de diferente. Mau sinal: não evoluíste! Reler um livro é mais ou menos como voltar à sala de aula em que cursamos a pré-escola. Nesta situação, sempre nos admiramos “Nossa, parecia tão grande naquela época!”. Mas não era. A sala continua a mesma. Nós é que crescemos. No caso da leitura, pensamos “Nossa, eu não lembrava que era tão bom!” Ou tão ruim, sei lá.

E não era.

Nós é que crescemos.

; )