Sunday, July 01, 2007

O legado da nossa riqueza

Estou tendo que trabalhar com Memórias Póstumas de Brás Cubas com minhas turmas de segundo ano. Li este romance anos atrás e, de certa forma, o releio todos os anos, uma vez que tenho que ensiná-lo. Esta é justamente uma das maiores vantagens de se dar aulas de Literatura: tu te obrigas a reler as obras, e é incrível como a cada leitura fazemos uma interpretação diferente.

A mudança que percebi este ano tem relação com a famosa frase final do romance: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Foi uma excelente medida: Cubas poupou sua prole de ter um pai imbecil! E, muito embora não devamos confundir autor e personagem, o fato de Machado de Assis também não ter tido filhos me leva a pensar que ele concorda com sua criatura. Felizes também dos herdeiros de Machado que poderiam ter sido e não foram. Miséria?! Então é somente isso que a humanidade tem a transmitir? E a arte?! E a ciência?!

Brás Cubas era um chato! E Machado de Assis devia ser também! Odeio pessimistas! O pessimismo é a posição mais confortável para os acomodados: ela os isenta do esforço para mudar alguma coisa. E nem é preciso muito esforço para fazer a vida valer a pena: se Machado de Assis tivesse dançado ao som de Dancing Queen num salão com um globo de espelhos girando no centro do teto, jamais escreveria uma bobagem dessas!

Existem milhões de razões para se celebrar a vida. Milhões de pequenos momentos que por si só já teriam justificado nossa passagem na Terra. Posso enumerar os meus:

1) assistir a um espetáculo de ballet ao som do Bolero de Ravel. Eu tinha 8 anos de idade e, pelo que me lembro, foi a primeira vez em que senti êxtase, a primeira vez em que senti o que anos depois eu descobriria que Kant chamou de sublime. Aliás, o Bolero de Ravel sem coreografia já é sublime;

2) A propósito, há várias músicas que ouvidas uma única vez já seriam mais do que suficientes para morrermos felizes: Eleanor Rigby (ai, aquele coral de vozes!...), Come together (ai, aquela guitarra do refrão!...), Tomorrow never knows (AI, O SOLO INVERTIDO DA GUITARRA DO GEORGE HARRISON!!!), Miss you (alguém consegue escutar sua introdução sem pensar em sacanagem?!), Can’t been seen, Moonlight drive, Try a little tenderness, Don’t stop me now, The song remains the same... Vamos parar por aqui, senão a lista não terminará!;

3) Chorar de rir com meu amigos naqueles momentos em que me perguntei por que me mato tanto fazendo abdominais na academia, se é muito mais gostoso me matar de tanto gargalhar;

4) Perder o fôlego olhando o pôr-do-sol do Guaíba – há quem diga que há crepúsculos mais belos em outras paragens, mas como diz Fernando Pessoa, “O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia, porque ele não é o rio da minha aldeia...” ; ) – ao som de Insensatez no saxofone;

5) Beijar na boca;

6) Estar bem por baixo e, depois, encontrar-se bem por cima, olhar para trás e perceber que consegui superar o obstáculo tão aparentemente intransponível;

7) Dar colo ao meu sobrinho quando ele teve medo do tubarão do Procurando Nemo – a doce sensação de proteger...

8) ...e ter a dulcíssima sensação de ser protegida, é claro!

9) Sentir dor, prazer e beleza em doses extremas – a indescritível sensação de estar vivo...

10) A vida, em suma, é MARAVILHOSA, e eu quero, sim, transmitir a algumas criaturas o legado dessa riqueza, mostrar-lhes músicas, poemas, telas, pessoas, vinhos, cerveja, árvores, mares, e dizer-lhes: "olhem, meus filhos, isso tudo é de vocês!"

O engraçado é que eu nunca havia pensado nisso nas outras vezes em que li o romance em questão. Taí: reler livros e rever filmes são ótimos termômetros para mensurar nosso crescimento espiritual, já que o valor do objeto avaliado depende do valor de quem o avalia. Pode ser que tu vejas o mesmo filme centenas de vezes e não sintas nada de diferente. Mau sinal: não evoluíste! Reler um livro é mais ou menos como voltar à sala de aula em que cursamos a pré-escola. Nesta situação, sempre nos admiramos “Nossa, parecia tão grande naquela época!”. Mas não era. A sala continua a mesma. Nós é que crescemos. No caso da leitura, pensamos “Nossa, eu não lembrava que era tão bom!” Ou tão ruim, sei lá.

E não era.

Nós é que crescemos.

; )