Monday, February 23, 2009

As razões das exceções

Por que só aquela é vermelha?

Como já escrevi alguns posts atrás, passei férias em Salvador. Logo, não sobrou dinheiro para eu fazer algo neste carnaval. O carnaval de 2009 está sendo aqui, em Porto Alegre, em frente ao computador, ouvindo música no YouTube, lendo alguns parágrafos de A jangada de pedra, de Saramago, escrevendo no blog, pensando, pensando, pensando... E tem sido muito bom, sabe? É um retiro espiritual forçado.

Minha irmã disse que, se fosse homem e fosse apresentado a mim, me acharia a mulher mais desinteressante do mundo por estar passando o carnaval sozinha em casa (a Sandra e seus preconceitos...) Pois eu discordo dela. Discordo dela totalmente. Se a maioria esmagadora das pessoas faz alguma coisa no carnaval, o que haverá de especial com a minoria que não faz nada? As exceções, me interessam muito elas!

Pois só vim a pensar nisso hoje, alguns minutos atrás. Está chovendo em Porto Alegre, de modo que não pude levar Diná, minha companheira de todas as horas que, aliás, completou um ano ontem, para passear. Por isso, levei-a agora à noite ao pequeno jardim do meu prédio, só para ela se divertir um pouquinho - pelo menos ela! -, e pude ver que, no bar em frente, havia duas pessoas conversando. Duas pessoas conversando no bar que fica em frente ao meu prédio! Numa segunda de carnaval chuvosa em Porto Alegre! Único! Insólito! Se eu tivesse levado meu celular, teria tirado foto. Se eu não tivesse pudor nenhum, deixaria a Diná desvendando os mistérios daquele jardim pelos quais só os cães se interessam em desvendar e atravessaria a rua e pediria uma cerveja e me sentaria àquela mesa e perguntaria com real curiosidade pela resposta:

_ Por que vocês estão aqui?

Ah, essa ideia de que se intrometer na vida alheia é falta de educação impede diálogos incríveis! Evita encontros inesquecíveis!

Subindo de volta ao meu apartamento, o inusitado continuou. A janela do meu quarto dá para os fundos do meu prédio, aliás dá para os fundos dos outros prédios também. Telhados, janelas, garagens, varais e peças de roupas que caíram deles e que ninguém fez questão de resgatar. Pois ao passar pela janela do meu quarto, ouvi vozes. Ouvi vozes e não vi luz brilhando de nenhuma janela. Na minha vizinhança, pensei, alguém conversa no escuro. No carnaval, milhões de pessoas bebem, beijam, tiram o pé do chão e batem na palma da mão. Mas quantas conversam no escuro?

Que vontade de ir até lá e perguntar:

_ Por que vocês estão aqui? E por que estão no escuro?

Mas eu nem sei o número do apartamento. Por que não gritar? Poderia gritar, eles ouviriam, pois eu não os estou ouvindo conversar? Mas eu perturbaria a ordem se o fizesse. Ordem do quê, criatura? Não tem ninguém no bairro inteiro a não ser aquelas duas pessoas conversando no bar e essas outras duas no escuro! Ah, mas mesmo assim... Vocês nunca tiveram a impressão de que o próprio silêncio se incomoda com o barulho? Vocês nunca se flagraram cochichando com alguém de madrugada até que esse alguém perguntasse porque vocês estão falando baixo, já que não tinha ninguém dormindo mesmo, e daí vocês começaram a falar alto e sentiram um desconforto e tiveram a impressão de que estavam violando alguma coisa, mas não sabiam o quê? Pois era o próprio silêncio. Era a ordem das coisas. Leiam a crônica Insônia, de Luis Fernando Verissimo, e vocês vão me entender. Aliás, vocês vão se entender – que é pra isso que existem literatura e gênios como o Verissimo. Diz ele nessa crônica que à noite sua casa não é sua. Ele tem razão. À noite, nosso bairro também não é nosso, nem a cidade. Mesmo e principalmente quando ela está vazia numa segunda de carnaval.

Então, como sou tão respeitosa em relação ao silêncio e à ordem das coisas, eu não grito. Eu só imagino. Imagino o que poderia acontecer se eu saísse pela cidade a visitar todos que ficaram em Porto Alegre no carnaval e lhes indagaria o porquê de estarem aqui. O que não viria como resposta, hein?

Um senhor, ouvindo Coltrane e com um DVD de Um miterioso assassinato em Manhattan nas mãos, me diria que simplesmente detesta carnaval. Diria que houve outrora tempos bons de carnaval, tempos em que a trilha sonora ainda era composta de bons sambas e em que até a malandragem era inocente, mas que nada mais disso existia e que, por isso, ele preferia ignorar a data. Então nós ficaríamos até o amanhecer da quarta-feira de cinzas assistindo a todos os filmes de Woody Allen. Que boas risadas não renderiam!

Uma viúva diria que todos os filhos foram passar o carnaval na praia e a deixaram só. E eu perguntaria quais seriam as razões de os filhos deixarem-na só, e ela contaria tudo desde o início, desde que conhecera o pai deles, e de como tinha sido sua reação ao descobrir sua primeira gravidez. E eu perguntaria se na segunda e na terceira tinha sido a mesma coisa, e que expectativas ela tinha criado para cada um deles, e se ela não teria negligenciado de alguma forma um ou outro ou todos. Que boa reflexão renderia!

E um homem me diria que está com o pai hospitalizado e que é filho único. E eu perguntaria se o pai cuidava da saúde, e ele diria “Que nada! Enxugava uma garrafa de cana por dia!”. E então ele contaria que na juventude seu pai saía a fazer serenatas para diversas mulheres, e como a sua mãe sofrera por causa disso. “Mas a sua mãe não sabia que ele fazia isso antes de casarem?”, eu perguntaria, e ele diria “Claro que sabia, pois foi ouvindo a que ele fez para ela que ela se apaixonou, só que ela pensou que depois dela, ele pararia”, e eu retrucaria “E por que ele não parou?”, e ele responderia “Porque o que ele gostava não era tanto da musa, mas da serenata em si”. E assim ele continuaria descrevendo todas as mulheres para quem seu pai havia cantado e, às vezes, até arriscaria alguns versos das canções de que se lembrasse. Que boas histórias não renderiam!

E uma moça, com olhar triste e violão em punho, me diria que não está em clima de carnaval porque está sofrendo por amor. Diria que foi a mulher da transição. “O que é a mulher da transição?”, eu perguntaria, e ela explicaria “É a mulher com quem um homem fica no período que compreende o fim de um amor e o início de outro”. “E por que tu te sujeitaste a este papel?!”, eu questionaria, e ela diria que não sabia que era este o papel que ele lhe havia reservado. “E que desculpa ele te deu quando começou a amar essa outra?!”, eu perguntaria, e ela diria “Nenhuma, ele não disse nada, ele simplesmente sumiu”. E então ela começaria a dedilhar o violão e cantaríamos juntas “Trama em segredo teus planos, parte sem dizer adeus...” Que bons sambas não renderiam!

São muito interessantes, sim, as pessoas que não fazem nada nas datas em que todo o mundo faz alguma – e, geralmente, a mesma – coisa.

Brilhante legítimo - mas não único

Elis: depois dela não apareceu mais ninguém?

Vou mexer em vespeiro, mas vamos lá.

Um de meus passatempos favoritos é ver vídeos no YouTube. Eu simplesmente amo música, amo ver os artistas que admiro cantando/tocando e amo ver as versões que os anônimos deste mundo dão às canções. Em vários desses vídeos, deixo comentários. E em vários deles, leio os comentários alheios e, não raro, me deparo com o velho clichê: “nunca vai haver uma cantora como Elis”.

Concordo. Em parte.

Em primeiro lugar, porque obviamente não podemos prever o futuro. Podemos dizer no máximo que, desde que Elis morreu, nunca houve, até os dias de hoje, uma cantora como Elis. E ainda assim, só no Brasil. Quem ousará discutir que Amy Winehouse não está no patamar de Elis? Timbre magnífico, talento indiscutível, interpretações carregadas de emoção e repertório nota 10. Alguém vai contrariar?

Amy Winehouse: só quem ama o passado é que não vê

Em segundo lugar, o que eu acho é que até hoje nunca houve uma cantora que pudesse cantar As curvas da estrada de Santos como Elis. Ou Atrás da porta. Ou Como nossos pais. Ou Me deixas louca. Estas são músicas desesperadamente cheias de sentimento que, sim, exigem uma intérprete que lhes imprima emoção, e isso, de fato, no Brasil, nunca ninguém fez como Elis. Talvez Maria Bethânia o faça, mas, ainda assim, tento imaginar Grito de alerta e Olhos nos olhos na voz de Elis, e acredito que ela faria miséria dessas canções – da mesma forma que teria feito miséria de algumas composições de Cazuza, se tivesse vivido a tempo de conhecê-lo.

Muitas vezes, há músicas que surgem numa versão qualquer e, depois, carregadas pela emoção de uma outra intérprete, ficam muito melhores. É o caso de Will you still love me tomorrow?, que surgiu com as Shirelles na década de 60, ganhou diversas versões nas décadas subsequentes (Carole King fez uma, procurem no YouTube), mas, pelo menos para mim, tornou-se definitiva com Amy Winehouse. Amy parece cantá-la com o coração sangrando, e aí está seu mérito.

Will you still love me tomorrow? com The Shirelles


Will you still love me tomorrow? com Amy Winehouse


Em suma, o que faz de Elis e de Amy cantoras únicas é a intensidade de suas interpretações.

Mas, aí vem a minha tese: NEM TODA CANÇÃO É INTENSA. Nem toda canção canta dores lancinantes e paixões rasgadas e desesperadoras. Há as que cantam a indiferença, o tédio, a covardia, e essas pedem vozes amenas. Vamos falar de Pessoa, música a que me refiro no meu último post. O sujeito da canção rejeitou alguém especial pelo medo de amar. Covardia. Cansaço. Descrença. Conseguem imaginar versão melhor do que a de Marina? Conseguem imaginar Elis fazendo uma versão muito melhor do que a dela?

E ainda há as canções que cantam nada. Ou quase nada. O barquinho, de Roberto Menescal e Roberto Bôscoli, por exemplo. É uma canção sobre a calma de um entardecer de verão. Ouçam a versão de Elis e comparem com a de Maysa. A de Maysa é muito melhor, e ainda assim, a voz de Maysa também é muito dramática para esta letra. Prefiro a versão de Nara Leão, suave... como um entardecer de verão.

O barquinho com Elis Regina


O barquinho com Maysa


O barquinho com Nara Leão