Thursday, April 26, 2007

Iceberg



O que é isto?
Um iceberg
Diriam os céticos
Uma fotografia de um iceberg
Diriam os puristas
Uma metáfora,
Diria eu,
Da obra de arte
Do amor
Do ódio
Da inveja
Do ciúme
Do desejo de agradar
Do medo da rejeição
Da sua auto-sabotagem
Da sua vontade de desistir justo agora que está tão perto de alcançar
Do seu desinteresse pelo que conseguiu alcançar depois de almejar tanto
Da sua coragem
Da sua determinação de aço
Dessa generosidade incomum
De tanta magnanimidade
Desse interesse repentino pelo que até ontem era indiferente
Do seu consumismo
Da sua avareza
Da sua preguiça
Da sua gula
Da sua gordura
Da sua obsessão por ficar belo
Da sua curiosidade
Da sua elegância
Do seu vocabulário chulo
Dos seus hábitos bizarros
Do seu desejo por quem não deveria desejar
Da sua atração irresistível justamente pelo que mais lhe causa repulsa

Da religião
Da ciência
Da política
Do racismo
Do machismo
Do feminismo
Da social-democracia
Do preço da gasolina
Do estado das coisas

E, é claro,
Sobretudo
De ti,
Dele,
Deles,
De mim.

Conversa de botequim


Dias atrás, numa edição já passada do jornal Zero Hora que me caiu nas mãos, li a coluna da Martha Medeiros. Dizia ela que queria participar do Big Brother, e em seguida enumerava suas razões, entre as quais ficar isolada dos problemas do mundo, sem telefone, televisão, internet, notícias indigestas, etc, e conviver com um bando de descerebrados. Para ela, todos os participantes são descerebrados. E têm a favor de si a grande vantagem de não saber quem é João Hélio, de quem só terão conhecimento daqui um ano, quando lerem uma notinha acerca do aniversário funesto no jornal, se é que lêem jornal, “me permitam o otimismo”. Foi o que ela escreveu: “me permitam o otimismo”.

A insinuação de que ela considera pouco inteligentes os participantes deste programa me parece clara. E, posso estar errada, mas quando ela os chama de descerebrados, me parece que, a seu ver, ela, sim, é cerebrada. Ou seja, ela é inteligente, eles são burros. Simples assim.

A pergunta que não quer calar é: qual será o conceito de inteligência da “inteligente” Martha Medeiros? A impressão que dá é que, para ela, ser inteligente é ter aquele tradicional hábito de pensar como homem, rico, branco, judaico-cristão e ocidental. Qualquer pensamento inclinado ao modo oriental, não-cristão, não-branco, pobre e feminino não é um pensamento diferente, é um pensamento burro. Logo, os big brothers só seriam considerados inteligentes se discutissem aquilo que o establishment julga ser inteligente. Mas eles não discutem. E nem devem conhecer Martha Medeiros. Se me permitem o otimismo.

Martha Medeiros é típica intelectual de classe média brasileira, que pensa como todo o mundo da sua classe e cor pensa. Mas o mundo não é só a classe média, dona Martha! Nem só o Moinhos de Vento. Existe muito mais para além das fronteiras dos bairros elegantes da provinciana Porto Alegre. Existe um público que lê Diário Gaúcho, que aliás pertence ao mesmo grupo do jornal para o qual a senhora escreve os seus textos cerebrados. E não há um motivo sequer que permita que eu, a senhora ou qualquer outro “cerebrado” que lê Shakespeare e assiste a Fellini nos consideremos superiores a tal público. E sabe por quê? Porque toda o nosso conhecimento de Shakespeare e Fellini não conseguiu impedir a morte de João Hélio, para citar o mesmo episódio a que a senhora recorre na sua coluna.

Nossa erudição não serviu para nada. E não tem de servir mesmo. Ela não é uma ferramenta para ter um uso. Ela é apenas a expressão de um ponto de vista, assim como a preferência de alguns pelo Diário Gaúcho é a expressão de outro. Os programas favoritos desse público não acrescentam nada à nossa cultura, é o que dizem seus detratores. Mas os nossos, também não! Assistir a uma entrevista com Chico Buarque é um deleite, porque ele diz coisas inteligentes. Mas isso não muda nada. No dia seguinte, vão continuar incendiando ônibus.

Quer saber um exemplo de alguém que realmente acrescentou alguma coisa à nossa cultura? Rosa Parks. Um dia, um homem branco entrou num coletivo e, como era praxe entre os brancos na época, pediu à negra Rosa que se levantasse para dar lugar a ele. Rosa olhou para ele e voltou a cabeça para a janela. Não levantou. Criou celeuma. Talvez não no mesmo dia, talvez não naquela semana, mas graças a Rosa, os negros americanos não precisaram mais passar pela humilhação de ter de se levantar para dar lugar a um branco. Rosa era mulher, pobre e negra. Não preenchia mais da metade daqueles cinco requisitos básicos para ser considerada inteligente no mundo ocidental. Mas ela, sim, mudou alguma coisa, e sem dizer uma palavra, muito menos de um vocabulário erudito! Isto provoca mudanças: gestos! O resto é conversa de botequim!

Sunday, April 22, 2007

Recuo

Esses passos para trás
não são um retrocesso.
São apenas
o recuo
necessário
para o impulso
para o grande salto

O costume suspenso pela arte


Ontem fui ao cinema assistir ao documentário A vida é um sopro, sobre Oscar Niemeyer. Não é bem como eu esperava. O filme não conta a vida do arquiteto, não menciona nada ou quase nada sobre sua infância e adolescência, sobre sua vida pessoal, em suma. Isso, no entanto, não torna menos interessante a obra, que privilegia o trabalho de Niemeyer e suas opiniões sobre assuntos diversos.

Das sete artes, a arquitetura seja talvez aquela sobre a qual eu menos conheço. Na verdade, sempre a entendi como arte pelo modo com que expressa traços de uma cultura ou época. Niemeyer alargou minha visão. E foi isso o que mais me chamou a atenção no documentário: a apresentação de obras arquitetônicas como obras de arte que, a exemplo de qualquer outra, surpreendem e encantam olhos viciados na mesmice da paisagem de todos os dias.

Aliás, esse foi um dos principais objetivos do arquiteto em todas as suas obras: fazer diferente. A palavra “diferente” é dita várias vezes por ele ao longo do documentário. E parece ser repetida em seu discurso diário. Estas palavras, atribuídas a ele, tirei do site www.niemeyer.org.br:

"... Quando projetei o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, exigindo na praça um rebaixamento de quatro metros, o fiz para protegê-la melhor dos ventos e do frio, tornando-a visível de cima pelos que a volta dela passavam. Uma característica que a faz diferente de todas as outras da Europa." (grifo meu).

O curioso é que ele não fez diferente apenas na arquitetura. O fez também no próprio modo de falar. Observem o fragmento da sua fala: “...visível de cima pelos que a volta dela passavam”. A ordem mais usual, a direta, seria “visível de cima pelos que passavam a volta dela”. Niemeyer inverte as posições do verbo e do adjunto adverbial, criando um efeito, lá vem a palavrinha de novo, diferente. Em que esta inversão lhe altera o sentido? Isto varia de acordo com a visão de cada um. A mim parece que ele enfatiza a própria praça em detrimento do movimento dos transeuntes. Mas isso, agora, é o que menos me interessa. Mais importante é que, ainda que não alterasse em nada o sentido da frase, a inversão da forma soa nova aos ouvidos – pelo menos aos mais sensíveis – e mostra que é possível inovar com ações muito simples, nem que seja apenas para criar uma descontinuidade na rotina.

Muita gente fala mal da rotina. Eu confesso que adoro rotina, mas também gosto de sair dela de vez em quando. E como se sai dela? Através de algo que lhe faça total contraste. Às vezes temos a impressão de que ficamos dois meses de férias, quando tudo o que fizemos foi fazer algo completamente atípico durante um único fim de semana.

Para mim, apreciar uma obra de arte causa este mesmo efeito. O espanto que ela provoca é uma suspensão do hábito.

É que narciso acha feio o que não é espelho...



Ah, ser professora! Melhor: ser professora de alunos inteligentes, como são os meus!

Para trabalhar sobre o Surrealismo no terceiro ano, interpretei com a turma as telas Cisnes refletindo elefantes, de Dalí, e A clarividência, de René Magritte. Por fim, pedi a eles que analisassem sozinhos a tela Attempting to impossible, do mesmo pintor belga. Fiquei maravilhada com as observações por eles feitas! Chamaram minha atenção para detalhes que eu nunca havia percebido – a conveniência de trocar impressões!...

Na obra, eu só havia conseguido enxergar o individualismo do homem que cria uma mulher segundo os seus caprichos, conforme a sua idealização do que seja uma mulher perfeita, ignorando, portanto, a riqueza de se conviver com a imperfeição dos feitos de carne e osso. Mas meus alunos me fizeram ver mais.

Uma dupla de alunos observou a expressão séria do criador e da criatura. Eu nunca tinha atentado para isso. Sim, estão sérios os dois. Como não poderiam deixar de estar, penso eu, pois que alegria e vivacidade pode ter alguém pretensioso a ponto de inventar para si uma companhia, como se todo o resto do mundo não fosse suficiente? E o que se pode esperar de alguém que é criado por um criador com tal espírito?

Outra dupla ponderou que a criatura tem traços físicos semelhantes aos do criador. É verdade! Tem mesmo! E tal apontamento enriquece a leitura – e confirma a prepotência do artista. Quer dizer então que a perfeição só é possível tendo semelhanças com ele?

Isso me faz lembrar aquele verso de Caetano Veloso, de que gosto muito – “É que narciso acha feio o que não é espelho...”, e aquele poema de Ricardo Reis, Ninguém a outro ama:

Ninguém a Outro Ama

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.


Há quem diga que nos apaixonamos por pessoas que têm características que não encontramos em nós, buscando uma complementaridade. Bobagem! O que nos fascina nos outros é o que eles têm de semelhante a nós. E, às vezes, disfarçamos nossa pretensão com traje diametralmente oposto. Mas é só um disfarce, e um disfarce que cai tão logo a convivência faça as diferenças salientarem-se. Então a queda do véu revela o que o outro realmente é: um estrangeiro. E nós todos sofremos de xenofobia. Mal conseguimos suportar o que há de estrangeiro em nós mesmos, olhamos com expressão nauseabunda para a distorção entre o que somos e a imagem que construímos do que somos. Porque haveríamos de suportar no outro?

O melhor do poema, entretanto, é o consolo que nos dá por não sermos amados. Os que não nos amam não têm nada contra nós. Apenas percebem o abismo que nos separa deles, e é custoso amar quem está longe.

Mais custoso ainda é amarmos a nós mesmos quando tomamos uma distância de nós, confiantes de que não esqueceríamos o caminho de volta. Esquecemos o caminho de volta. Perdemos o ponto de referência. Temos uma vaga lembrança de como ele seja, mas não conseguimos chegar até ele. Nem ir adiante, construir um novo caminho. Não conseguimos partir tendo esta sensação de estar deixando algo para trás.

Não recuamos, porque nos falta a bússola. Não avançamos, porque nos falta coragem. Ficamos estáticos. Nos resta aprendermos a sermos mais generosos com nosso estrangeiro. Aceitar que somos o que aprendemos – ou inventamos – que era feio ser.

Sunday, April 01, 2007

Os pseudo-intelectuais contra o Big Brother

É o que eu costumo dizer: pior que alguém sem espírito crítico algum, é alguém sem espírito crítico algum que acredita tê-lo. O segundo tipo existe em número bem menor do que o primeiro, mas já começa a se proliferar, manifestando suas opiniões enlatadas em discursos gastos pelo uso e repletos de lugares-comuns.

Recebi por e-mail semanas atrás uma mensagem que, aparentemente, pretendia fazer o leitor “refletir” sobre a mediocridade do povo brasileiro a partir do gosto deste pelo programa Big Brother Brasil. E como, sabe-se lá por quê, de uns tempos para cá “refletir” virou sinônimo de falar mal, dizia a mensagem que, se 29 milhões de pessoas ligam para eliminar um “bobão” ou uma “bobona” (palavras do autor) a cada paredão, e se cada ligação custa hipotéticos R$ 0,30, isso significa que a Rede Globo e a operadora do 0300, em caso de terem feito um acordo de divisão igual do valor arrecadado, embolsarão semanalmente, cada uma, a quantia de R$ 4,35 milhões. Feito este raciocínio, o autor – que, creio eu, considera-se crítico – abusa do senso comum: escreve que é um absurdo o trabalhador gastar tanto dinheiro com um programa que nada acrescenta à sua formação (ao invés de investi-lo em livros de literatura e filosofia que o fariam exercitar sua autocrítica); que quem paga esta fortuna para votar em quem deve sair do programa não sabe em quem votou na última eleição; que os participantes do programa não têm cultura nem vocabulário básico, enfim, aquele blábláblá batido de pseudo-intelectual.

Alguns argumentos são tão rasos que chega a dar preguiça de contrariar. Em primeiro lugar, não é em toda semana que há 29 milhões de ligações, aliás, 29 milhões de votos não significam o mesmo número de ligações: pode-se votar – gratuitamente – pela Internet. Em segundo, a quantia assombrosa apontada pelo autor é, como ele próprio afirma, a soma arrecadada. Se algum telespectador votar em todos os paredões, ao final do programa ele terá gasto cerca de R$ 3,00. Nem a literatura e a filosofia mais baratas custam isso. Ontem mesmo paguei o dobro deste valor por uma edição de bolso usada de Hamlet. Em terceiro, o argumento de que o programa não acrescenta nada à formação do público é totalmente inválido. Digamos que a afirmação seja verdadeira. Não vejo razão para que isso sirva de base para classificá-lo como inútil. Os torcedores também empregam fortunas para assistir a jogos de futebol – nos estádios ou em canais de pay-per-view – que também nada acrescentam às suas faculdades intelectuais. E não vejo mal nenhum nisso. Tanto a proposta do Big Brother quanto a do futebol são outra: divertir. Em quarto lugar, o autor da mensagem utiliza o termo “cultura” equivocadamente. Não existe ser humano sem cultura. O que existe é variação cultural. O autor poderia, no máximo, afirmar que os participantes não são eruditos, nunca que eles são incultos. E em quinto, há, sim, participantes inteligentes em todos as edições do programa. Alguns se destacam pela habilidade nas relações interpessoais, outros, no planejamento estratégico do jogo, e outros, para a surpresa do autor, no uso correto do português. Eu mesma já testemunhei uma sister corrigindo os erros de concordância nominal – e utilizando exata e corretamente esta nomenclatura – de uma colega.

Porém, de todos as idéias veiculadas pela mensagem, a que me parece ser a mais superficial é a de que o Big Brother Brasil faz sucesso porque o público é, digamos assim, pouco dotado intelectualmente. Tenho outra teoria: a de que este programa tenha uma função simbólica. O ponto mais evidente é a recorrente vitória de membros de minorias da sociedade, como pobres e homossexuais. Finalmente se pode assistir a alguém humilde e justo vencer na vida, desejo de todo cidadão brasileiro! Mas há ainda outros aspectos. O Big Brother é o único espaço em que o brasileiro tem reais condições de avaliar quem é honesto ou não, para poder premiar os primeiros e banir os últimos (a quem contra-argumentar que as edições da emissora são tendenciosas, sugiro voltar algumas linhas neste texto e reler a palavra “simbólica”). É a única oportunidade em que o brasileiro pode fazer e refazer esta avaliação semanalmente, e expulsar quase que imediatamente quem traiu sua confiança. Em nenhum outro caso, acredito, o brasileiro testemunha, julga, condena e pune os fisiologistas. Deve ser por isso que quem paga para votar no Big Brother não lembra em quem votou de graça em Brasília. Aliás, Brasília deveria se inspirar em alguns detalhes do programa. Substituir os salários astronômicos pelo regime de estalecas, por exemplo. Liderança na câmara? Prova de resistência (moral, é claro) neles! E, como não poderia deixar de ser, as câmeras e microfones por todos os lados, vigiando e delatando ininterruptamente. Com uma eliminação por semana, para excluir os imorais ou, no mínimo, aqueles que não comparecem às sessões e, por isso, acabam não fazendo diferença.

Não quero dizer com tudo isso que o programa em questão não tenha pontos negativos, mas apenas que os pontos que a mensagem levanta como tal são imediatistas. Ser crítico não é falar mal das coisas, mas se perguntar por que elas são do jeito que são. Sempre há uma razão – no mínimo! E não existe produto cultural que nada acrescente àqueles que dele desfrutam. Se estes realmente tiverem espírito crítico, terão a oportunidade de exercitá-lo não importa diante do quê. O olhar que se dirige ao objeto é muito mais relevante que o próprio objeto. Pensar que “se está na Globo, e o povo gosta, certamente é porque é ruim” é o extremo oposto da crítica consciente: é preconceito, idéia preconcebida, pseudo-intelectualidade. Pro paredão com tudo isso!