Sunday, April 22, 2007

É que narciso acha feio o que não é espelho...



Ah, ser professora! Melhor: ser professora de alunos inteligentes, como são os meus!

Para trabalhar sobre o Surrealismo no terceiro ano, interpretei com a turma as telas Cisnes refletindo elefantes, de Dalí, e A clarividência, de René Magritte. Por fim, pedi a eles que analisassem sozinhos a tela Attempting to impossible, do mesmo pintor belga. Fiquei maravilhada com as observações por eles feitas! Chamaram minha atenção para detalhes que eu nunca havia percebido – a conveniência de trocar impressões!...

Na obra, eu só havia conseguido enxergar o individualismo do homem que cria uma mulher segundo os seus caprichos, conforme a sua idealização do que seja uma mulher perfeita, ignorando, portanto, a riqueza de se conviver com a imperfeição dos feitos de carne e osso. Mas meus alunos me fizeram ver mais.

Uma dupla de alunos observou a expressão séria do criador e da criatura. Eu nunca tinha atentado para isso. Sim, estão sérios os dois. Como não poderiam deixar de estar, penso eu, pois que alegria e vivacidade pode ter alguém pretensioso a ponto de inventar para si uma companhia, como se todo o resto do mundo não fosse suficiente? E o que se pode esperar de alguém que é criado por um criador com tal espírito?

Outra dupla ponderou que a criatura tem traços físicos semelhantes aos do criador. É verdade! Tem mesmo! E tal apontamento enriquece a leitura – e confirma a prepotência do artista. Quer dizer então que a perfeição só é possível tendo semelhanças com ele?

Isso me faz lembrar aquele verso de Caetano Veloso, de que gosto muito – “É que narciso acha feio o que não é espelho...”, e aquele poema de Ricardo Reis, Ninguém a outro ama:

Ninguém a Outro Ama

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.


Há quem diga que nos apaixonamos por pessoas que têm características que não encontramos em nós, buscando uma complementaridade. Bobagem! O que nos fascina nos outros é o que eles têm de semelhante a nós. E, às vezes, disfarçamos nossa pretensão com traje diametralmente oposto. Mas é só um disfarce, e um disfarce que cai tão logo a convivência faça as diferenças salientarem-se. Então a queda do véu revela o que o outro realmente é: um estrangeiro. E nós todos sofremos de xenofobia. Mal conseguimos suportar o que há de estrangeiro em nós mesmos, olhamos com expressão nauseabunda para a distorção entre o que somos e a imagem que construímos do que somos. Porque haveríamos de suportar no outro?

O melhor do poema, entretanto, é o consolo que nos dá por não sermos amados. Os que não nos amam não têm nada contra nós. Apenas percebem o abismo que nos separa deles, e é custoso amar quem está longe.

Mais custoso ainda é amarmos a nós mesmos quando tomamos uma distância de nós, confiantes de que não esqueceríamos o caminho de volta. Esquecemos o caminho de volta. Perdemos o ponto de referência. Temos uma vaga lembrança de como ele seja, mas não conseguimos chegar até ele. Nem ir adiante, construir um novo caminho. Não conseguimos partir tendo esta sensação de estar deixando algo para trás.

Não recuamos, porque nos falta a bússola. Não avançamos, porque nos falta coragem. Ficamos estáticos. Nos resta aprendermos a sermos mais generosos com nosso estrangeiro. Aceitar que somos o que aprendemos – ou inventamos – que era feio ser.

1 comment:

Juliano said...

Tu demonstraste bem que a frase "os opostos se atraem" não é verdadeira. Mas eu não seria tão radical ao dizer que isso sempre funciona dessa maneira. Talvez muitas vezes, até na maioria delas, mas nem sempre. Certa vez me disseram que eu preferia as morenas porque a minha mãe é morena e que no fundo eu queria alguém igual a mim. Pode ser a verdade, mas racionalmente não é o que eu quero. Quero alguém semelhante a mim, mas nem tanto. Alguém que me mostre que o que eu faço ou deixo de fazer pode ser diferente para que eu seja melhor. Se sou uma pessoa muito séria é melhor eu ficar com alguém assim também? Ou se sou muito brincalhão? Difícil dizer. No fim de tudo, acabamos ficando simplesmente com alguém de quem gostamos e nessa hora nem sempre conseguimos fazer escolhas. Ou será que conseguimos?
Parabéns pelo texto. Bjs, Juliano