Thursday, June 01, 2006

Uma mulher e seu amante?

Felicidade clandestina


Eu ainda era muito jovem - logo, entendia muito pouco da vida - quando li pela primeira vez o título deste conto: Felicidade clandestina. Na verdade, eu nem sabia que era título de conto. Era o título de um livro, um livro da Clarice Lispector, que era uma mulher que aparecia nos livros didáticos de Literatura Brasileira dos meus irmãos mais velhos. Eu xeretava aqueles livros. Xeretava os livros de que falavam aqueles livros. E xeretava as estantes das bibliotecas - das livrarias, nem tanto, porque onde eu morava não havia livrarias. E em algumas dessas oportunidades, meus olhos passaram por esta coletânea de contos cujo título era este: Felicidade clandestina. Não retirei o livro - era livro de adulto. Mas eu já sabia o que era, pelo menos semanticamente, "felicidade" e "clandestina", embora ainda não soubesse, é claro, o que era "semântica".

Conforme o tempo passa, vamos compreendendo certas coisas. Incrível como elas passam a fazer sentido. Mas o que eu acho mais engraçado é que, normalmente, só registramos as informações, palavras e imagens que já fazem sentido no momento em que tomamos contato com elas, ou seja, quando elas têm com o que se associar nas nossas mentes. Não é comum fazermos tais registros quando as idéias a serem associadas ainda estão por serem assimiladas. Mas isso, de vez em quando, também acontece. Já cantarolei muitas músicas cujas letras só fui entender muitos anos depois. Já me peguei muitas vezes percebendo a razão por que aquele diretor colocou aquela cena naquele filme que eu vi anos atrás. Parece que nossos sentimentos sabem o que ainda nos vai ser útil. Os sentimentos, são previdentes eles.

O fato é que conforme o tempo passa, vamos compreendendo certas coisas. A observação da vida alheia, a leitura de bons livros e alguns anos de terapia me fizeram compreender melhor aquela combinação original de substantivo e adjetivo: felicidade clandestina.

Ora, a combinação é até óbvia, mas antes de ser feita, o era somente para alguém com a singularíssima perspicácia de Clarice Lispector. Há algumas pessoas para quem a felicidade só é felicidade se clandestina, proibida, desfrutada com medos e pudores.

Li este conto com meus alunos do terceiro ano - que são, para meu deleite, excelentes leitores -, e alguns deles afirmaram acreditar que todos temos um pouco disso: desse pudor da felicidade. Esse desejo de mantê-la por perto, como que para não esquecermos nunca de que ela existe, sim, para enfim mantermos a esperança e a certeza de que viver faz algum sentido, mas de nunca usufruirmos dela, como se ela fosse como comida, cuja apreciação consiste na destruição do apreciado, algo ingerido, desfrutado, digerido e tranformado em dejetos. Será isso o que nos amarra famintos diante da felicidade, o pavor da convivência com os seus resíduos?

Então contemplamos apenas, e essa contemplação nos transmite segurança. Sim, ela existe, está lá, bem diante de nossos olhos, se eu quiser, posso tocá-la, e saber esta possibilidade é o bastante para que eu continue acordando todos os dias. É como o brinquedo novo que não tirávamos da caixa nos primeiros dias que se seguiam ao dia de nosso aniversário. Mas se assim for, como saberemos se a felicidade é, mesmo, como um bem de consumo não durável? Como saberemos se ela não é o perfume cuja essência estamos deixando que se perca, o vinho que estamos deixando virar vinagre?

Leia o conto e faça seu comentário.

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

I´VE TAKING MY TIME WITH A NUMBER OF THINGS THAT WEREN´T IMPORTANT YESTERDAY


...And I still gooooooooooooooo..........

Incrível como sempre tem uma música dos Beatles para cada momento da minha vida.

Eu já não sou mais a mesma. Eu costumava ser aquele tipo de pessoa para quem qualquer coisa está bom. Se a companhia era agradável, não importava que a cerveja fosse barata, e o atendimento, amador. E eu achava bonito ser assim. Legal era ser simples. Tinha até um certo orgulho disso. Pensava até que as pessoas poderiam gostar mais de mim por eu ser assim tão modesta. E tenho certeza de que algumas pessoas se encantaram por mim justamente por causa disso. Humilde, não lhes exigiria muito. Aceitaria sua precariedade de modo passivo, com um sorriso bondoso nos lábios e toda a compreensão do mundo nos olhos. Enfim, uma pessoa fácil de agradar. Eu era o sonho e a solução dos preguiçosos, dos pobres, dos desprovidos de ambição de qualquer espécie. Eu era o cobertor dos acomodados.

Eu hoje seria o pesadelo dessas pessoas. Eu seria o balde de água fria no momento mais profundo do sono. O pesadelo cheio de angústia, daqueles de que já se acorda cansado. Eu tenho sido toda impaciência com a preguiça e com a auto-comiseração. Não acredito mais nas desculpas. Não aceito mais que a doença, a injustiça e a conjuntura econômica sejam os bodes expiatórios do fracasso, do atraso e da probeza. E não tenho mais me contentado com pouco. Nem com o mais ou menos. Tenho desejado com ardor tudo aquilo que antes eu considerava exagero e frescura. Tudo o que antes eu achava que só se obtinha para exibir e ostentar. Mas eu tenho descoberto sensações de cuja existência jamais suspeitei. Descobri que, muito mais do que exibido, o que é do bom e do melhor pode ser desfrutado, aproveitado, curtido. É que a minha visão era de quem não tinha e a quem, portanto, só restava avacalhar. Desdenhava porque não podia comprar - e julgava que não poderia fazê-lo nunca.

Mas graças a Freud tenho mudado. Graças a ele tenho sido incompreendida por muitos. Mas esta incompreensão é o preço do ingresso para o mundo dos que não avacalham porque podem. Barato. Uma pechincha.