Sunday, April 22, 2007

Recuo

Esses passos para trás
não são um retrocesso.
São apenas
o recuo
necessário
para o impulso
para o grande salto

O costume suspenso pela arte


Ontem fui ao cinema assistir ao documentário A vida é um sopro, sobre Oscar Niemeyer. Não é bem como eu esperava. O filme não conta a vida do arquiteto, não menciona nada ou quase nada sobre sua infância e adolescência, sobre sua vida pessoal, em suma. Isso, no entanto, não torna menos interessante a obra, que privilegia o trabalho de Niemeyer e suas opiniões sobre assuntos diversos.

Das sete artes, a arquitetura seja talvez aquela sobre a qual eu menos conheço. Na verdade, sempre a entendi como arte pelo modo com que expressa traços de uma cultura ou época. Niemeyer alargou minha visão. E foi isso o que mais me chamou a atenção no documentário: a apresentação de obras arquitetônicas como obras de arte que, a exemplo de qualquer outra, surpreendem e encantam olhos viciados na mesmice da paisagem de todos os dias.

Aliás, esse foi um dos principais objetivos do arquiteto em todas as suas obras: fazer diferente. A palavra “diferente” é dita várias vezes por ele ao longo do documentário. E parece ser repetida em seu discurso diário. Estas palavras, atribuídas a ele, tirei do site www.niemeyer.org.br:

"... Quando projetei o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, exigindo na praça um rebaixamento de quatro metros, o fiz para protegê-la melhor dos ventos e do frio, tornando-a visível de cima pelos que a volta dela passavam. Uma característica que a faz diferente de todas as outras da Europa." (grifo meu).

O curioso é que ele não fez diferente apenas na arquitetura. O fez também no próprio modo de falar. Observem o fragmento da sua fala: “...visível de cima pelos que a volta dela passavam”. A ordem mais usual, a direta, seria “visível de cima pelos que passavam a volta dela”. Niemeyer inverte as posições do verbo e do adjunto adverbial, criando um efeito, lá vem a palavrinha de novo, diferente. Em que esta inversão lhe altera o sentido? Isto varia de acordo com a visão de cada um. A mim parece que ele enfatiza a própria praça em detrimento do movimento dos transeuntes. Mas isso, agora, é o que menos me interessa. Mais importante é que, ainda que não alterasse em nada o sentido da frase, a inversão da forma soa nova aos ouvidos – pelo menos aos mais sensíveis – e mostra que é possível inovar com ações muito simples, nem que seja apenas para criar uma descontinuidade na rotina.

Muita gente fala mal da rotina. Eu confesso que adoro rotina, mas também gosto de sair dela de vez em quando. E como se sai dela? Através de algo que lhe faça total contraste. Às vezes temos a impressão de que ficamos dois meses de férias, quando tudo o que fizemos foi fazer algo completamente atípico durante um único fim de semana.

Para mim, apreciar uma obra de arte causa este mesmo efeito. O espanto que ela provoca é uma suspensão do hábito.

É que narciso acha feio o que não é espelho...



Ah, ser professora! Melhor: ser professora de alunos inteligentes, como são os meus!

Para trabalhar sobre o Surrealismo no terceiro ano, interpretei com a turma as telas Cisnes refletindo elefantes, de Dalí, e A clarividência, de René Magritte. Por fim, pedi a eles que analisassem sozinhos a tela Attempting to impossible, do mesmo pintor belga. Fiquei maravilhada com as observações por eles feitas! Chamaram minha atenção para detalhes que eu nunca havia percebido – a conveniência de trocar impressões!...

Na obra, eu só havia conseguido enxergar o individualismo do homem que cria uma mulher segundo os seus caprichos, conforme a sua idealização do que seja uma mulher perfeita, ignorando, portanto, a riqueza de se conviver com a imperfeição dos feitos de carne e osso. Mas meus alunos me fizeram ver mais.

Uma dupla de alunos observou a expressão séria do criador e da criatura. Eu nunca tinha atentado para isso. Sim, estão sérios os dois. Como não poderiam deixar de estar, penso eu, pois que alegria e vivacidade pode ter alguém pretensioso a ponto de inventar para si uma companhia, como se todo o resto do mundo não fosse suficiente? E o que se pode esperar de alguém que é criado por um criador com tal espírito?

Outra dupla ponderou que a criatura tem traços físicos semelhantes aos do criador. É verdade! Tem mesmo! E tal apontamento enriquece a leitura – e confirma a prepotência do artista. Quer dizer então que a perfeição só é possível tendo semelhanças com ele?

Isso me faz lembrar aquele verso de Caetano Veloso, de que gosto muito – “É que narciso acha feio o que não é espelho...”, e aquele poema de Ricardo Reis, Ninguém a outro ama:

Ninguém a Outro Ama

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.


Há quem diga que nos apaixonamos por pessoas que têm características que não encontramos em nós, buscando uma complementaridade. Bobagem! O que nos fascina nos outros é o que eles têm de semelhante a nós. E, às vezes, disfarçamos nossa pretensão com traje diametralmente oposto. Mas é só um disfarce, e um disfarce que cai tão logo a convivência faça as diferenças salientarem-se. Então a queda do véu revela o que o outro realmente é: um estrangeiro. E nós todos sofremos de xenofobia. Mal conseguimos suportar o que há de estrangeiro em nós mesmos, olhamos com expressão nauseabunda para a distorção entre o que somos e a imagem que construímos do que somos. Porque haveríamos de suportar no outro?

O melhor do poema, entretanto, é o consolo que nos dá por não sermos amados. Os que não nos amam não têm nada contra nós. Apenas percebem o abismo que nos separa deles, e é custoso amar quem está longe.

Mais custoso ainda é amarmos a nós mesmos quando tomamos uma distância de nós, confiantes de que não esqueceríamos o caminho de volta. Esquecemos o caminho de volta. Perdemos o ponto de referência. Temos uma vaga lembrança de como ele seja, mas não conseguimos chegar até ele. Nem ir adiante, construir um novo caminho. Não conseguimos partir tendo esta sensação de estar deixando algo para trás.

Não recuamos, porque nos falta a bússola. Não avançamos, porque nos falta coragem. Ficamos estáticos. Nos resta aprendermos a sermos mais generosos com nosso estrangeiro. Aceitar que somos o que aprendemos – ou inventamos – que era feio ser.