Saturday, October 14, 2006

Elogio do singelo



O cinema tem algumas cenas antológicas. A do menino sobrevoando de bicicleta tendo como fundo a lua em ET é um exemplo. E acho que merece mesmo ter este lugar nesta categoria. Agora a cena pode ser vista como piegas, mas convenhamos: é bonita.

Há, no entanto, cenas que, talvez por serem muito singelas, por não usarem recurso algum de efeito especial, edição ousada, ou o que quer que seja, ficam de fora dessa galeria de cenas antológicas - pelo menos da oficial, ou da do imaginário coletivo. Para mim, porém, algumas deixam marcas indeléveis.

No filme Quase famosos, de Cameron Crowe, há uma dessas cenas muito simples e que, apesar disso - ou, no meu caso, que gosto da simplicidade, por isso mesmo - me comoveu bastante. É a cena - na verdade, seqüência - em que o protagonista - um menino de 15 anos que acompanha a turnê de uma banda de rock para escrever um artigo sobre ela para a revista Rolling Stone - declara seu amor por Penny Lane e, em seguida, percebe o quanto este sentimento é forte. Penny está completamente embriagada e sob o efeito de altas doses de um remédio, devido ao fato de não se conformar por não ser amada por um dos membros da banda. "Why doesn´t he love me?" (Por que ele não me ama?), pergunta ela justamente ao garoto, pouco antes de perder a consciência. Este então diz-lhe que a ama e em seguida chama um médico para socorrê-la. Enquanto o doutor faz lavagem estomacal na moça no banheiro, do quarto, o garoto a observa, os olhos fixos em Penny, como se nada mais existisse no mundo. Perdidamente apaixonado.

Do que mais gostei na cena foi o seu realismo. O menino não perdeu seu olhar em Penny num momento em que ela estava linda - como de fato a atriz que a interpretou, Kate Hudson, é - e soberana. Penny estava em condições degradantes, bêbada, drogada, nas mãos de um médico e de sua auxiliar, vomitando na banheira as subtâncias que ingerira para se matar por causa de um amor não correspondido. Condição miserável, portanto, humana. Prova de que o rapaz não estava apaixonado apenas pela sua imagem de bela e popular entre as groupies. Amava, sim, sua pessoa, sua personalidade, o que incluía algumas atitudes desmedidas.

Não poderia deixar de apontar, é claro, outro detalhe da cena que contribuiu muito para que eu fosse cativada por ela: ela ocorre ao som de My Cherie Amour, de Stevie Wonder, cuja letra tem tudo a ver com a situação do menino. Linda, linda, linda!

Para quem escutar a música na íntegra:

Friday, September 01, 2006

Um elogio da leitura


Todos os dias eu redescubro a maravilha da literatura. Seria natural que meus olhos já estivessem acostumados a ela. Que o fascínio já tivesse se desgastado, perdido um pouco do seu brilho. Mas ocorre o contrário. Quanto mais eu vivo, mais me encanto. Este é, de fato, um caso em que me identifico com aquele poema do Caeiro,
...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Sinto-me nascida a cada momento para a eterna novidade da literatura.

A leitura de um texto literário é como um relacionamento amoroso, sexual. No início deste, há uma certa cerimônia, uma cautela, principalmente se passamos muito tempo com outra pessoa de um relacionamento anterior. Vamos tateando, conhecendo aos poucos a nova pessoa, ansiosos para descobrir suas qualidades, temerosos quanto aos seus defeitos. E tem a questão da insegurança. Será que estou agradando? Será que ele ou ela vai me satisfazer? Então há um receio por um possível fracasso, um abandono, pelo desperdício de tempo e energia investidos. De qualquer maneira, é preciso tentar. Pode ser que dê certo, e se insistirmos mais um pouco?

Com o texto literário é a mesma coisa. Principalmente se ficamos muito tempo lendo outro antes do atual. Levamos tempo para nos acostumar com o novo estilo, o novo enredo, as personagens diferentes, a temática original. Quase nunca sou pega desde a primeira página. Aliás, nem no primeiro capítulo. Como nas minhas relações pessoais, eu custo um pouco a me entregar. Às vezes a falta de encanto é tanta, que não chego ao seu fim. E, como num relacionamento rompido, há a frustração - "poderia ter empregado meu tempo lendo outra coisa" -, e até uma certa culpa: "se eu tivesse tentado mais um pouco, não teria eu lido o melhor livro da minha vida?"

Talvez o fato de algumaas pessoas não gostarem de ler literatura se deva à expectativa de um gozo instantâneo. Mas como no sexo, é preciso suar para atingir o êxtase. É necessário esforço e envolvimento. E, é claro, é necessário um tesão inicial. E é engraçado como me sinto quando percebo que só faltam vinte páginas para o final. Leio com mais lentidão, atraso o processo para aproveitar um pouco mais.

Hemingway disse que quando terminava de escrever, sentia um cansaço "semelhante ao de quando se termina de fazer amor". Eu sinto isso quando termino uma leitura. E nunca mais olho para aquele amontoado de páginas, aquela capa na minha estante da mesma maneira. É sempre um olhar de cumplicidade, como o de dois amantes em um evento social. Um bom livro sempre nos modifica.

Saturday, June 10, 2006

Beautiful, beautiful, beautiful...


A belíssima imagem acima é a reprodução do quadro The Lady of Shalott, do pintor John William Waterhouse. A obra, pertencente ao Tate Gallery, em Londres, é uma referência ao poema de mesmo título do poeta Lord Tennyson. O poema conta a história de uma jovem que vive sozinha em uma ilha. Seu trabalho é ver o mundo refletido em um espelho e reproduzi-lo em peças de tapeçaria. Em função de um feitiço, ela é proibida de olhar para o mundo diretamente através da janela. Confinada, ela reproduz em suas tapeçarias as imagens refletidas em seu espelho: pessoas comuns, casais de namorados, cavaleiros. Um dia, no entanto, ela vê o reflexo de alguém que a impressiona: Sir Lancelot, o cavaleiro do Rei Arthur. A Lady of Shalott manda sua proibição às favas e dirige-se à janela para pôr seus olhos no próprio cavaleiro, ao invés de em seu reflexo. Ao fazê-lo, sente o poder de sua maldição: o espelho se estilhaça, a tapeçaria voa janela afora e uma torrencial tempestade de outono começa a cair. A jovem sai de seu castelo, encontra uma canoa e corre rio abaixo, cantando a canção de sua morte. Sua canoa e seu corpo são encontrados tempos depois pelos moradores do local.

Ainda não elaborei uma interpretação para esta bela história. Mas como leitora experiente, algo me diz que esta história oferece muitos elementos para muitas reflexões. Reflitam daí, que eu reflito daqui.

Beijos,

Ana

Saturday, June 03, 2006

Interpretações...


Oscar Wilde dizia que a única função da arte era ser bela. Concordo em parte. Torço mesmo o nariz para muitas das obras das últimas exposições a que fui ultimamente e confesso que nem me dei ao trabalho de interpretá-las. Sua feiúra me espantou tão lougo pus meus olhos nelas. A feiúra agride os olhos. Desagrada. Causa repulsa.

Há, no entanto, quadros que, embora não primem pela beleza, são passíveis de uma interpretação tão interessante que me fazem esquecer Wilde. Observem este quadro do pintor surrealista René Magritte. Um pintor mira seu "modelo" - um ovo - e pinta uma ave. Em outras palavras, ele representa um ovo como um pássaro. Na minha opinião, o quadro é um elogio ao artista, ser humano dotado de percepções especiais acerca da realidade. Onde a maioria enxerga um ovo, quem sabe até um alimento, o artista enxerga a beleza de um pássaro, a tranqüilidade do vôo. O artista não se limita àquilo que seus olhos vêem materialmente. No caso em questão, não se restringe a um pequenino objeto, limitado, fechado, capaz de caber na palma de nossa mão. Ele vê, sim, a liberdade das asas abertas, a doce habilidade de voar com a qual o homem só pode sonhar. E desse modo, o artista dá asas ao próprio olhar. O artista vê adiante. E é generoso com aqueles que apreciam suas obras. Dão-nos poucos elementos para que possamos também nós partilhar, ainda que em escala menor, do poder de enxergar longe, de dar às coisas a nossa visão. Como deuses que dão aos mortais um poder divino, os artistas dão aos seus apreciadores um pouco de seu gênio, do poder de criar. James Joyce disse certa vez que é mais difícil encontrar um bom leitor do que um bom escritor. Eu sempre pensei que aquele que lê (ou ouve, vê, enfim) um gênio também deve ser considerado um pouco gênio.

E você, qual é a sua interpretação para o quadro de Magritte?

Bjs!

Thursday, June 01, 2006

Uma mulher e seu amante?

Felicidade clandestina


Eu ainda era muito jovem - logo, entendia muito pouco da vida - quando li pela primeira vez o título deste conto: Felicidade clandestina. Na verdade, eu nem sabia que era título de conto. Era o título de um livro, um livro da Clarice Lispector, que era uma mulher que aparecia nos livros didáticos de Literatura Brasileira dos meus irmãos mais velhos. Eu xeretava aqueles livros. Xeretava os livros de que falavam aqueles livros. E xeretava as estantes das bibliotecas - das livrarias, nem tanto, porque onde eu morava não havia livrarias. E em algumas dessas oportunidades, meus olhos passaram por esta coletânea de contos cujo título era este: Felicidade clandestina. Não retirei o livro - era livro de adulto. Mas eu já sabia o que era, pelo menos semanticamente, "felicidade" e "clandestina", embora ainda não soubesse, é claro, o que era "semântica".

Conforme o tempo passa, vamos compreendendo certas coisas. Incrível como elas passam a fazer sentido. Mas o que eu acho mais engraçado é que, normalmente, só registramos as informações, palavras e imagens que já fazem sentido no momento em que tomamos contato com elas, ou seja, quando elas têm com o que se associar nas nossas mentes. Não é comum fazermos tais registros quando as idéias a serem associadas ainda estão por serem assimiladas. Mas isso, de vez em quando, também acontece. Já cantarolei muitas músicas cujas letras só fui entender muitos anos depois. Já me peguei muitas vezes percebendo a razão por que aquele diretor colocou aquela cena naquele filme que eu vi anos atrás. Parece que nossos sentimentos sabem o que ainda nos vai ser útil. Os sentimentos, são previdentes eles.

O fato é que conforme o tempo passa, vamos compreendendo certas coisas. A observação da vida alheia, a leitura de bons livros e alguns anos de terapia me fizeram compreender melhor aquela combinação original de substantivo e adjetivo: felicidade clandestina.

Ora, a combinação é até óbvia, mas antes de ser feita, o era somente para alguém com a singularíssima perspicácia de Clarice Lispector. Há algumas pessoas para quem a felicidade só é felicidade se clandestina, proibida, desfrutada com medos e pudores.

Li este conto com meus alunos do terceiro ano - que são, para meu deleite, excelentes leitores -, e alguns deles afirmaram acreditar que todos temos um pouco disso: desse pudor da felicidade. Esse desejo de mantê-la por perto, como que para não esquecermos nunca de que ela existe, sim, para enfim mantermos a esperança e a certeza de que viver faz algum sentido, mas de nunca usufruirmos dela, como se ela fosse como comida, cuja apreciação consiste na destruição do apreciado, algo ingerido, desfrutado, digerido e tranformado em dejetos. Será isso o que nos amarra famintos diante da felicidade, o pavor da convivência com os seus resíduos?

Então contemplamos apenas, e essa contemplação nos transmite segurança. Sim, ela existe, está lá, bem diante de nossos olhos, se eu quiser, posso tocá-la, e saber esta possibilidade é o bastante para que eu continue acordando todos os dias. É como o brinquedo novo que não tirávamos da caixa nos primeiros dias que se seguiam ao dia de nosso aniversário. Mas se assim for, como saberemos se a felicidade é, mesmo, como um bem de consumo não durável? Como saberemos se ela não é o perfume cuja essência estamos deixando que se perca, o vinho que estamos deixando virar vinagre?

Leia o conto e faça seu comentário.

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

I´VE TAKING MY TIME WITH A NUMBER OF THINGS THAT WEREN´T IMPORTANT YESTERDAY


...And I still gooooooooooooooo..........

Incrível como sempre tem uma música dos Beatles para cada momento da minha vida.

Eu já não sou mais a mesma. Eu costumava ser aquele tipo de pessoa para quem qualquer coisa está bom. Se a companhia era agradável, não importava que a cerveja fosse barata, e o atendimento, amador. E eu achava bonito ser assim. Legal era ser simples. Tinha até um certo orgulho disso. Pensava até que as pessoas poderiam gostar mais de mim por eu ser assim tão modesta. E tenho certeza de que algumas pessoas se encantaram por mim justamente por causa disso. Humilde, não lhes exigiria muito. Aceitaria sua precariedade de modo passivo, com um sorriso bondoso nos lábios e toda a compreensão do mundo nos olhos. Enfim, uma pessoa fácil de agradar. Eu era o sonho e a solução dos preguiçosos, dos pobres, dos desprovidos de ambição de qualquer espécie. Eu era o cobertor dos acomodados.

Eu hoje seria o pesadelo dessas pessoas. Eu seria o balde de água fria no momento mais profundo do sono. O pesadelo cheio de angústia, daqueles de que já se acorda cansado. Eu tenho sido toda impaciência com a preguiça e com a auto-comiseração. Não acredito mais nas desculpas. Não aceito mais que a doença, a injustiça e a conjuntura econômica sejam os bodes expiatórios do fracasso, do atraso e da probeza. E não tenho mais me contentado com pouco. Nem com o mais ou menos. Tenho desejado com ardor tudo aquilo que antes eu considerava exagero e frescura. Tudo o que antes eu achava que só se obtinha para exibir e ostentar. Mas eu tenho descoberto sensações de cuja existência jamais suspeitei. Descobri que, muito mais do que exibido, o que é do bom e do melhor pode ser desfrutado, aproveitado, curtido. É que a minha visão era de quem não tinha e a quem, portanto, só restava avacalhar. Desdenhava porque não podia comprar - e julgava que não poderia fazê-lo nunca.

Mas graças a Freud tenho mudado. Graças a ele tenho sido incompreendida por muitos. Mas esta incompreensão é o preço do ingresso para o mundo dos que não avacalham porque podem. Barato. Uma pechincha.

Sunday, May 21, 2006

Enfim, alguma coisa funciona no Brasil!!!

Nesta semana que passou, São Paulo provou o que o Rio já tinha demonstrado exaustiva e inegavelmente há muito tempo: há um Estado cada vez menos extra-oficial no Brasil, um Estado que está tomando conta do país, que está deixando de ser paralelo para ser central. Não seguimos mais a cartilha do poder legislativo. Não agimos mais de acordo com as leis oficiais. Obedecemos, sim, às leis dos traficantes. Eles nem precisam mandar. Na segunda, dia 15, apenas aconselharam a todos que deixassem seus locais de trabalho e voltassem para casa. Deu em congestionamento.

A pergunta que fica é: por que o crime organizado conseguiu controlar o Estado ao invés de o Estado conseguir controlar o crime organizado? Resposta óbvia: por isso mesmo, porque é organizado. Organização é algo que falta aos órgãos oficiais. Querem um exemplo da organização do crime? As regras estabelecidas o são para serem cumpridas. Quem não as cumpre, paga caro por isso. Em outras palavras, quando o traficante avisa ao seu cliente que, se não pagar a mercadoria, o matará, ele o fará mesmo! Não existe impunidade no crime organizado, coisa que na lei desorganizada sobra. Os métodos que sustentam a organização dos criminosos são bárbaros? Sem dúvida! Daí a lástima: custa admitir, mas a barbárie venceu. Deu banhos de ordem na civilização. E o resultado está aí.

Friday, April 28, 2006

Miséria, miséria em qualquer canto


Detesto pobreza. Em um dos restaurantes mais próximos do meu local de trabalho, tive meu pedido de um suco de laranja recusado sob a alegação de que a laranja está cara. Como não queria refrigerante, almocei sem suco – e praguejando contra a pobreza. Por que será que o dono do restaurante simplesmente não coloca este custo no preço do suco? me perguntava indignada. Então me dei conta de que talvez era porque sua clientela era pobre a ponto de não poder arcar com este custo extra. Mais: me dei conta de que eu sou habitué do restaurante e que, afinal, isso queria dizer alguma coisa. Tive, enfim, naquele dia, um almoço muito indigesto.
Isso ainda me fez lembrar de um dia em que, no restaurante do prédio da minha faculdade, perguntei se não havia outra marca de adoçante. Não tinha. Recomendei que comprasse da marca X. A moça respondeu com um largo sorriso: sua patroa só comprava “do mais barato”. Ela usou estas palavras: “do mais barato”. Sinto arrepios só de lembrar.
Os dois fatos têm entre si uns cinco anos de distância. Posso refletir sobre eles de suas maneiras diferentes. Uma, a coisa não está fácil para ninguém. Isso é pensamento de pobre. Outra, tenho estado nos lugares errados e preciso mudar. Isso é pensamento de quem quer crescer. Prefiro a segunda alternativa.
Faça uma experiência: aborde o primeiro que aparecer na sua frente e esbraveje: “detesto pobreza!”. Você tem 99% de chance de ser rotulado como preconceituoso. Pois é! O que tem a ver? Sei lá! O fato é que, pelo menos no Brasil, não gostar de pobreza é visto como sinônimo de não gostar de pobre! As pessoas pensam que se você odeia andar de ônibus, invariavelmente odiará também quem anda. Qual é a relação? Pergunte a elas!
A única relação que eu consigo fazer é a desse tipo de pensamento com a pobreza do Brasil. Se Adam Smith estava mesmo certo – e eu, na minha modestíssima opinião, penso que estava –, a nação é aquilo que o seu povo quer. Diz ele que “se cada indivíduo buscar seu próprio interesse, irá promover o bem comum”. (Discordo em parte do modo como este período está construído. Se o interesse de cada indivíduo for a pobreza, o povo irá promover o mal comum). Enfim, o que importa é que eu não penso que o brasileiro deseja o mal. Mas também não deseja o bem. Como escrevi acima, para o brasileiro, irritar-se com pobreza é coisa feia, de que se deve se envergonhar. Fazer cara feia ao comer bife com nervo ou sobremesa com gosto de maisena é frescura. Bom mesmo é gente “simples”, que gosta de tudo, se contenta com qualquer coisa.
Pense nas telenovelas brasileiras, a nossa escola de educação moral e cívica. Só quem deseja com ardor tornar-se rico são os vilões – que além de ambiciosos também são mentirosos, dissimulados, traidores, etc. Querer melhorar de vida é sempre, portanto, associado a um conjunto de características que define um sujeito como mau-caráter. Os mocinhos ficam ricos, sim. Mas só no final da novela e porque ganharam uma herança ou coisa do gênero. Eles nunca desejaram o dinheiro, tampouco trabalharam duro para tê-lo. A fortuna foi apenas um prêmio por eles serem tão bonzinhos. Mas isso é novela.
Outra coisa que me irrita são as explicações sociológicas para a pobreza, em que os pobres são sempre vistos como vítimas. O capitalismo é cruel? É, sem dúvida. Mas o papel de vítima não é um papel que não possa ser recusado. A questão é que – de novo a cultura brasileira! – tem-se a idéia de que deixar de ser vítima é invariavelmente virar a casaca, tornar-se algoz. Há culpa em dizer que se tem hora marcada em médico particular. Honrado mesmo é o sujeito que fica horas na fila do SUS. Tem pobre que tem síndrome de estocolmo. É esse pobre e essa pobreza que eu detesto.

Tuesday, January 17, 2006

Verdades desnecessárias

Depois de um bom tempo sem postar, por puro esquecimento de meu nome de usuário, estou de volta!

E volto falando sobre sinceridade!

É senso comum: pergunte a qualquer pessoa que requisito não pode faltar em um amigo ou namorado(a). Dentre várias características, lá vai estar ela, sempre ela, a sinceridade!!! E não podia ser diferente, afinal, todo o mundo gosta da verdade, certo?

Mais ou menos.

Há verdades que devem ser ditas para o bom funcionamento de um relacionamento – seja lá de qual natureza for! Porém, há verdades que deve ser omitidas exatamente pelo mesmo motivo.

Se, por exemplo, o seu subordinado está executando de modo ineficiente a sua função, abra o jogo com ele, é claro! Sou totalmente favorável a críticas construtivas. Elas nos fazem crescer, nos fazem evoluir, nos possibilitam descobrir do quão mais somos capazes, o que eleva nossa auto-estima! Mas se você acha que, gordo, feio, manco e com aquele mau hálito, seu subordinado nunca vai encontrar o amor de sua vida, guarde sua opinião com você. A auto-estima dele já deve ser baixa o suficiente sem ela.

Eu procuro ser sincera sobretudo comigo mesma! Quando ouço alguém dizendo que a Fulana é falsa porque se diz amiga da Beltrana, mas fala pelas suas costas que ela é insegura e egocêntrica, nossa, então eu também sou falsa! Eu não comento apenas os pontos positivos das pessoas. Comento os negativos também, e nem sempre os comento com a própria pessoa, simplesmente porque acho desnecessário!

Sinceramente, se você tem determinadas opiniões sobre mim, pode comentá-las pelas minhas costas. Mas não fale para mim. Eu não quero saber. Elas podem me deixar triste gratuitamente. Elas podem me tomar a esperança. Podem fazer com eu eu deixe de acreditar em mim. Podem me convencer de que não vale a pena. Podem me levar a desistir de tentar. E não me farão mal nenhum se forem ditas a outras pessoas, principalmente se eu não as conheço.

É claro que não é qualquer pessoa que vai me provocar tudo isso. E também já aprendi a ignorar certas pérolas, mesmo que venham que pessoas importantes para mim. Percebi que às vezes somos apenas a válvula de escape mais próxima que as pessoas têm para aliviar suas frustrações. Mas vá que eu esteja nesta posição nada estratégica justamente num dia em que estou frágil e vulnerável?

Se tem gente que detesta pessoas falsas, eu detesto muito mais aquelas que não têm papas na língua, reis e rainhas da polêmica e do constrangimento público. Pessoas que falam o que querem e nem sempre ouvem o que não querem, por não estarem diante de pessoas tão dotadas de presença de espírito e sarcasmo. Pessoas que enchem a boca para dizer “Eu falo o que eu penso!’ Pois eu quero que elas enfiem seus pensamentos em outro lugar! Para o diabo a sua sinceridade! Vão contranger as senhoras suas mães!

Existe um lugar intermediário entre a hipocrisia nojenta e a sinceridade depreciativa. Considero-o o mais saudável para que as engrenagens das relações sociais continuem azeitadas. E é nela que eu procuro sempre estar.

Algumas pessoas vão jurar discordar de mim. Vão dizer que preferem a sinceridade sempre! Mas me engana, que eu gosto!