Saturday, September 22, 2007

O resgate da delicadeza


Apenas recentemente assisti ao filme O resgate do soldado Ryan. Tenho resistência a filmes de guerra – assim como a tenho em relação a livros também (dos quais Guerra e Paz entra na minha lista dos mais enfadonhos) –, mas, resolvi dar crédito a Steven Spielberg. E não me arrependi. Spielberg demonstrou extrema habilidade ao retratar o horror e a delicadeza que mesmo no pior dos horrores nunca deixa de brotar. A obra até evocou em minha memória o poema A flor e a náusea, de Drummond, aquele em que um eu lírico amargurado manda o mundo parar porque uma flor furou o asfalto, o nojo e o tédio.

O resgate do soldado Ryan é cinema de verdade. Sim, porque nem todo filme é cinema, assim como nem todo livro é literatura. No filme em questão, a imagem não é apenas um suporte para mostrar personagens em ação. Ela é um instrumento de expressão, assim como o mármore o é para o escultor. Chamou minha atenção a cena em que uma das personagens conta aos demais soldados, durante um raro momento de repouso, que na infância fazia um esforço danado para se manter acordado até a mãe, enfermeira, voltar do trabalho. Contudo, quando ela chegava, ele fingia estar dormindo, ainda que percebesse a presença da mãe na porta de seu quarto, louca de vontade de conversar com o filho e saber como foi seu dia. “Eu não sei porque eu fazia isso”, diz ele emocionado. Vale ressaltar que ele lembra desta história porque um companheiro reclama da falta de sono, ao que este aconselha: “É só tentar não dormir”. De fato, há coisas das quais quanto mais se tenta fugir, mais facilmente com elas se depara.

O que faz desta cena uma cena de cinema são os recursos visuais a que o diretor recorreu para contribuir na construção do seu significado. Enquanto o soldado fala deste seu conflito – ter sono quando se tenta se manter acordado, fingir dormir depois de ter feito um esforço para não dormir –, o ambiente está todo escuro, e algumas velas permitem ao espectador ver apenas as faces das personagens que falam. Praticamente uma tela de Caravaggio. Spielberg foi buscar na arte barroca, a arte das antíteses e do jogo de luz e sombra, um meio de expressar visualmente a ambivalência da personagem – e quem sabe da própria missão de salvar o soldado Ryan e da guerra como um todo.

Mas, foi outra cena que conquistou cadeira cativa na lista das minhas favoritas de todos os filmes a que já assisti. Trata-se daquela em que quatro soldados escutam Edith Piaf em meio a ruínas de um vilarejo da França. Tudo é lindo na cena: a incidência dos raios solares, a disposição simétrica das personagens – com um afastamento do soldado intérprete, porque seu temperamento difere muito mesmo do perfil dos demais –, as ruínas, a vitrola, e, é claro, a tristeza da voz quase inaudível de Piaf.

Para isso serve a arte: para ser um repouso da loucura. Para mostrar através dos sentidos do corpo que este corpo, além de ferramenta de batalha, também é o templo de uma alma capaz de transcendê-lo, mesmo que se seja um estrangeiro em meio a ruínas de um massacre.

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A música de Edith Piaf que faz parte da cena não foi uncluída no álbum da trilha sonora do filme (!!!). Mas ela está no YouTube, no vídeo abaixo: