Sunday, December 02, 2007

"Eu pensava que era assim"

Outro dia fiquei sabendo de uma notícia infelizmente não tão incomum: um pai que levava diariamente a filha à escola abusava dela – também diariamente – no meio do trajeto. Perguntada sobre o porquê de nunca ter reclamado do abuso a outros adultos, a menina respondeu singelamente, como só as crianças sabem ser: “eu pensava que era assim”.
Não me chamou tanto a atenção a violência. Chamou-a a resposta da menina: “eu pensava que era assim”. É verdade, quando somos crianças, o mundo é a nossa família. Se nossos pais costumarem beber água do bico da chaleira, vamos achar que doidos são os que têm o estranho hábito de tomar água em copo. Talvez a menina achasse natural não só ser abusada – para ela, nem era abuso – mas também tenha crescido acreditando que aquilo tudo fazia parte do “ritual” de ir à escola. Pode ser que ela supusesse, ao chegar na sala de aula, que também suas coleguinhas faziam aquilo com seus respectivos pais. E que também elas tinham sangramentos e desconfortos, coisas naturais de se ir à escola e do relacionamento com os pais.
Fico imaginando a perplexidade da menina diante da perplexidade dos demais adultos quando lhe perguntaram porque nunca havia se queixado. Deve ter se sentido como nós nos sentiríamos caso um grupo de adultos nos tivesse perguntado, quando éramos crianças: “O quê?! A sua mãe manda você tomar banho todos os dias depois que chega da escola?! Gente, a mãe dela manda ela toma banho todos os dias quando chega da escola!” Vêm dois ou três adultos e me abraçam com compaixão: “Meus Deus! Banho todos os dias ao chegar da escola! Fazer isso com uma criança inocente! Como tem gente doente neste mundo!!!” Tiram-me da guarda da minha mãe, prendem-na, e passo a conviver com olhares piedosos em minha direção. E eu, que achava que tomar banho depois da escola era a coisa mais trivial do mundo! Que jurava que todos os meus colegas faziam o mesmo!
Mas mais do que tudo isso, fico pensando em quantas coisas fazemos até hoje – conosco mesmos e com os outros – só porque “pensamos que é assim”. Quantas atitudes e reações absurdas não temos porque nos naturalizamos com elas? Aquela resposta atravessada, aquela omissão, aquelas renúncias, aquele acesso de riso, aqueles planos... Será que muito de tudo isso não é também algo bizarro?
Isso tudo me lembra o texto É preciso olhar a vida com olhos de criança, do pintor Henri Matisse. Diz ele:
“Ver já um ato criador que exige esforço. Tudo o que vemos, na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação gerada pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível em uma época como a nossa, onde cinema, publicidade e periódicos nos inundam diariamente com imagens preconcebidas, que são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário para desembaraçar-se disso exige uma espécie de coragem, e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver tudo como se visse pela primeira vez.”
Penso que devemos levar este jeito artístico de olhar à vida de modo geral. Não digo que devamos perceber tudo como se fosse a primeira vez – porque seria ingênuo e tolo. E também porque perdemos muitos detalhes nas primeiras vezes, porque há sempre algo que nos chama mais a atenção e ofusca os outros elementos. Nos ocupamos demais aprendendo a lidar com o novo, de modo que não podemos aproveitá-lo totalmente. Mas deveríamos procurar encontrar novos aspectos nas experiências, perceber o sol, a chuva, ou um beijo sem o tédio do hábito, e não sempre do mesmo modo simplesmente porque “pensamos que é assim”.