Monday, December 31, 2007

Saldo 2007: positivo

Depois que li minha última postagem percebi que deixar tal texto como última postagem do ano seria muito amargo para um ano que foi muito generoso comigo. Vamos à lista de pontos positivos:

1) Finalmente consegui um emprego em um colégio particular de Porto Alegre! :)
2) Fiz amizades ótimas neste colégio!
3) Finalmente comecei a fazer aulas de canto!
4) Cantei no Teatro de Câmara Túlio Piva!
5) Fiz mais amizades ótimas na escola de música!

Que estas novas amizades perdurem e que tragam sempre mais novas amizades!!!

Thank you very much, 2007!

Feliz 2008 a todos!


Marcos, Ester, Maurício, Eu, Gilson e Fabinho pouco antes de entrarmos no palco: algumas das pessoas muito legais que conheci em 2007.

Vale tudo na Republiqueta da(o)s Bananas

Em 2008, a novela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e exibida pela Rede Globo, completa vinte anos. Quem assistiu não esquece. Não lembro de novela mais cruamente realista. Odete Roitman esculhambando o país, Marco Aurélio dando uma "banana" para ele enquanto foge com uma mala de dólares.

Lembro de uma cena em que Maria de Fátima (Glória Pires) tentava aplicar um migué em Marco Aurélio (Reginaldo Faria), ao que este respondeu, do alto da sua mesa de executivo da empresa do setor de aviação (ironia do destino!) TCA, em bom sotaque carioca: "Só se for pra tuas nêga!" Se Bakhtin tivesse visto isso, iria adorar ver um representante da elite emitindo esse discurso com desvio do padrão formal da língua. Ponto para os autores do diálogo, que chamaram a atenção do povo para o fato de que a elite brasileira pode até ser elite, mas, ainda assim, continua sendo brasileira - e isso dispensa comentários. Daí o "só se for pra tuas nêga!"

O que me fez lembrar desta novela foi uma foto publicada na edição de retrospectiva 2007 da Veja: uma foto de Renan Calheiros literalmente fazendo careta de deboche para todos nós. Como não lembrar da "banana" de Marco Aurélio? Como não lamentavelmente concordar com Odete Roitman?

Acho graça quando alguns brasileiros escrevem em letras garrafais pelos cartazes e muros afora que querem sua dignidade de volta. De volta? Algum dia houve dignidade?

O Brasil só vai ter dignidade - e a partir disso, começar a crescer - quando admitirmos, primeiro para nós mesmos, depois para o mundo (que já está careca de saber) que nós somos escravos, que fazemos o trabalho sujo que os países desenvolvidos preferem pagar para que façamos para eles porque estão ocupados com atividades mais nobres. Quando realmente conseguirmos não mais nos ofender quando os estrangeiros pensam que Brasil é só futebol e samba - porque, de fato, o Brasil é mesmo só futebol e samba, se não fosse, o povo não teria ficado mudo diante da absolvição de Renan Calheiros -, e decidirmos tirar proveito disso, aí, sim, talvez façamos progressos.

Em 2001, em um discurso para empresários brasileiros, o então presidenciável Lula disse que os países desenvolvidos precisam saber que o Brasil não é uma republiqueta das bananas. Mas o Brasil é uma republiqueta das bananas. E as bananas, aqui, têm triplo sentido.

Cena de Odete Roitman falando mal do Brasil:

http://www.youtube.com/watch?v=gloar9xq-ok&feature=related

Sunday, December 02, 2007

"Eu pensava que era assim"

Outro dia fiquei sabendo de uma notícia infelizmente não tão incomum: um pai que levava diariamente a filha à escola abusava dela – também diariamente – no meio do trajeto. Perguntada sobre o porquê de nunca ter reclamado do abuso a outros adultos, a menina respondeu singelamente, como só as crianças sabem ser: “eu pensava que era assim”.
Não me chamou tanto a atenção a violência. Chamou-a a resposta da menina: “eu pensava que era assim”. É verdade, quando somos crianças, o mundo é a nossa família. Se nossos pais costumarem beber água do bico da chaleira, vamos achar que doidos são os que têm o estranho hábito de tomar água em copo. Talvez a menina achasse natural não só ser abusada – para ela, nem era abuso – mas também tenha crescido acreditando que aquilo tudo fazia parte do “ritual” de ir à escola. Pode ser que ela supusesse, ao chegar na sala de aula, que também suas coleguinhas faziam aquilo com seus respectivos pais. E que também elas tinham sangramentos e desconfortos, coisas naturais de se ir à escola e do relacionamento com os pais.
Fico imaginando a perplexidade da menina diante da perplexidade dos demais adultos quando lhe perguntaram porque nunca havia se queixado. Deve ter se sentido como nós nos sentiríamos caso um grupo de adultos nos tivesse perguntado, quando éramos crianças: “O quê?! A sua mãe manda você tomar banho todos os dias depois que chega da escola?! Gente, a mãe dela manda ela toma banho todos os dias quando chega da escola!” Vêm dois ou três adultos e me abraçam com compaixão: “Meus Deus! Banho todos os dias ao chegar da escola! Fazer isso com uma criança inocente! Como tem gente doente neste mundo!!!” Tiram-me da guarda da minha mãe, prendem-na, e passo a conviver com olhares piedosos em minha direção. E eu, que achava que tomar banho depois da escola era a coisa mais trivial do mundo! Que jurava que todos os meus colegas faziam o mesmo!
Mas mais do que tudo isso, fico pensando em quantas coisas fazemos até hoje – conosco mesmos e com os outros – só porque “pensamos que é assim”. Quantas atitudes e reações absurdas não temos porque nos naturalizamos com elas? Aquela resposta atravessada, aquela omissão, aquelas renúncias, aquele acesso de riso, aqueles planos... Será que muito de tudo isso não é também algo bizarro?
Isso tudo me lembra o texto É preciso olhar a vida com olhos de criança, do pintor Henri Matisse. Diz ele:
“Ver já um ato criador que exige esforço. Tudo o que vemos, na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação gerada pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível em uma época como a nossa, onde cinema, publicidade e periódicos nos inundam diariamente com imagens preconcebidas, que são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário para desembaraçar-se disso exige uma espécie de coragem, e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver tudo como se visse pela primeira vez.”
Penso que devemos levar este jeito artístico de olhar à vida de modo geral. Não digo que devamos perceber tudo como se fosse a primeira vez – porque seria ingênuo e tolo. E também porque perdemos muitos detalhes nas primeiras vezes, porque há sempre algo que nos chama mais a atenção e ofusca os outros elementos. Nos ocupamos demais aprendendo a lidar com o novo, de modo que não podemos aproveitá-lo totalmente. Mas deveríamos procurar encontrar novos aspectos nas experiências, perceber o sol, a chuva, ou um beijo sem o tédio do hábito, e não sempre do mesmo modo simplesmente porque “pensamos que é assim”.