Tuesday, January 29, 2008

Ainda sobre a felicidade...

Escrevendo ontem sobre o hábito de algumas pessoas de postergarem a felicidade, não pude deixar de lembrar de dois poemas. O primeiro é o excelente Adiamento, de Álvaro de Campos, o heterônimo mais melancólico de Fernando Pessoa:

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...

Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...

O sujeito do poema parece estar convicto de que realmente tem condições de conquistar o mundo – e não duvido de que as tenha mesmo –, mas deixa para fazê-lo no futuro porque... bem, porque, como já escrevi no post anterior, conquistar não tem graça. Almejar a conquista é que tem. Ou talvez o sujeito seja apenas preguiçoso. Deixa para amanhã porque... acredita que o futuro lhe pertence. Confia na vida e não conta com a morte. Eis o risco de deixar as coisas para amanhã. Nem sempre o porvir de fato vem.

Julgar que “depois de amanhã é que está bem o espetáculo” é raciocínio de quem vive de imagem, de quem quer agradar aos outros, de quem pensa que precisa provar algo para alguém. Por que não fazer o espetáculo hoje? Porque ainda não está bem ensaiado? Porque ainda faltam alguns detalhes? E daí? Quem se importa? Você? Tem certeza que é mesmo à sua auto-exigência que quer atender?

Aliás, para que (ou para quem) fazer espetáculo, hein? Tive oportunidade de participar de um tempos atrás e posso assegurar que os preparativos & bastidores foram muito mais interessantes do que o espetáculo em si. E é melhor que tenha sido assim – e seria bom que fosse assim sempre, tanto no sentido real quanto (e principalmente) no metafórico –, porque em tudo na vida o processo é mais longo do que o fim. No caso do espetáculo real, só fiquei 3 minutos e 54 segundos no palco, veja só!...


Outro poema que me veio à mente é o Eterna mágoa, de Augusto dos Anjos:

Eterna mágoa

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo Inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

Em suma, se você acha que vai ser feliz quando atingir este ou aquele objetivo, esqueça! A pessoa que é infeliz não o é porque lhe falta algo, e nem mudará sua condição quando suprir esta carência. A felicidade – assim como a infelicidade – jamais virá de uma circunstância externa. O problema – e, eureka!, a solução – estão dentro da gente, e em nenhum outro lugar! (parece papo piegas de livro de auto-ajuda, mas a culpa é destes livros que tornam diversas verdades piegas!)

Não poderia deixar de terminar esta seção sem aqueles versos da música O que vem a ser felicidade?, de Orlando Morais (sim, mais conhecido como o-marido-da-glória-pires, mas que tem algumas composições muito legais, sim, senhor!):

Este sentimento poderoso
é um estado, é capital, é um país,
e o que há de mais maravilhoso é descobrir
que o tempo inteiro estava a um palmo do nariz...

;)

2 comments:

Marina. said...

Eu admiro muito Fernando Pessoa e seus heterônimos.
Identifico-me muito com seus poemas.
E ainda digo mais, uma das coisas que adoro fazer é ouvir minhas músicas favoritas lendo os escritos de Fernando e seus heterônimos.
É ótimo, tenho sempre a sensação de me tornar cada vez mais sensível a cada palavra que leio, e eu gosto de absorvê-las lentamente.
Depois que li ‘’Adiamento’’ comecei a mudar minha maneira de pensar.
Concordo com você, ‘’Por que não fazer o espetáculo hoje?’’
Na maioria das vezes temos ‘’ O cansaço antecipado e infinito.’’
Este poema é muito interessante, particularmente acho ninguém deveria morrer sem antes lê-lo. ;)
Meu Deus! Eu sempre me lembro de quando li em um de seus post’s ‘’Felicidade Clandestina’’ de Clarice Lispector...
Principalmente depois que eu comprei um livro que almejava tanto.
E então comecei a ler, mas sem pressa, sem ansiedade, coisa que é bem difícil acontecer comigo, sou muito ansiosa.
Eu observava a capa, lia uma parte, relia... (...)
Porque eu não quero chegar ao final.
Quando eu termino de ler um livro que gostei muito é como se um amigo tivesse ido embora, é assim que me sinto toda vez que me lembro do Holden Caulfield... ( O apanhador no campo de centeio).

Você já assistiu este filme‘’Poder além da vida’’?
Se não, eu recomendo.
E em uma das partes o filme destaca este pensamento de que a melhor parte não é a chegada ao objetivo, mas sim o caminho percorrido.

‘’A felicidade não existe; existem, sim, momentos felizes que fazem a vida mais feliz’’.

A falta de tempo não é desculpa para não fazer o que se tem vontade.
Algumas coisas podem ser até difíceis, complicadas, mas não são impossíveis, nada é impossível quando você realmente quer, quando é algo que não prejudicará ninguém, quando é algo que você realmente ama. O universo estará com você.
Não crie obstáculos, se você quer você pode. Acredite mais em você e ouça apenas quem realmente ama você.
Este ‘’você’’ sou eu, você, ele...

‘’O medo está somente em nossas mentes, nos controlando todo tempo. ’’ (Evanescence Sweet Sacrifice ) ’’

Sim!! As situações externas não geram felicidade ou infelicidade, o que pode gerar esta circunstância é a maneira como recebemos as situações.

Ana parabéns, assim como a nossa amiga disse, eu também espero um livro seu.
Apoio muito esta idéia.
Espero que esteja bem.

Marina. @)-------

Ana Maria Montardo said...

Marina! Gosto muito das suas contribuições! Você não tem blog?

Beijo!