Thursday, May 01, 2008

O cárcere do amor

No livro A odisséia, de Homero, em que se narra o retorno de Ulisses a Ítaca, há uma passagem em que a deusa Circe adverte o herói para o perigo das Sereias. “Se alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das sereias, adeus regresso! Não tornará a ver a esposa e os filhos inocentes sentados alegres a seu lado, porque com seu canto melodioso, elas o fascinam, sentadas na campina, em meio a montões de ossos de corpos em decomposição, cobertos de peles amarfanhadas”. Por isso, Ulisses ordena que seus tripulantes tampem seus ouvidos com cera. Mas ele, ah, ele não quer perder a oportunidade de conhecer a beleza do canto, e desse modo, decide manter seus ouvidos bem abertos. Para não ceder aos encantos das sereias, no entanto, ele se prende no mastro da galé. Assim, enquanto seus homens continuam a remar, ele escuta a melodia fatalmente fascinante, mas mantém-se vivo para chegar a sua casa e encontrar a esposa Penélope e o filho Telêmaco.

Quando li A odisséia, aos 19 anos, este trecho – e aposto que muitos outros – passou batido. Não que eu não tenha entendido a metáfora. Eu sequer percebi que havia ali uma metáfora. Hoje, leio a passagem com outros olhos – e com outro coração, principalmente, pois é para ele que a literatura e todas as artes são feitas.

Ulisses prendeu-se ao mastro por amor à família. Provavelmente o canto das sereias é mais atraente que a família, do contrário, ele não precisaria ter se prevenido com amarras. Mas de tal prevenção também se deduz que deve haver algo de muito bom nesta família. Suponho que seja a vida, de modo geral – ele sabia que as sereias levam à morte – e o amor, de modo específico.

Amar é quase uma dor

Já li em livros de filosofia que, por ser uma via pela qual o sujeito descentra-se de si mesmo para doar-se a outro, o amor é libertador. Bobagem! O amor é uma prisão – e o é justamente porque envolve outro. Viver centrado no próprio umbigo é que é ser livre. Não é preciso conviver com o medo da perda do objeto do amor – e não é necessário dar satisfações de onde, quando, como e com quem se vai – e se vem! A solidão não exige horário para voltar para casa.

O amor exige – isso e muito mais. O amor demanda cuidados – e aí está o dilema. Cuidar quando estamos a fim chega a ser prazeroso. Nem sempre, contudo, estamos a fim. Às vezes, temos mais vontade de ouvir o canto das sereias. Mas se não aceitarmos este fardo de cuidar mesmo quando estamos sem vontade de fazê-lo, perderemos o que amamos – e não queremos isso. E haja corda para nos amarrar!

Cuidar do que se ama dá trabalho. Perder o que se ama por desleixo dá tristeza. Djavan está certo: amar é quase uma dor.


Como é bonito, meu Deus, o canto desta sereia!

Ainda tenho outra interpretação para as cordas de Ulisses. Se ele se amarrou para poder manter-se vivo, e se ele quis manter-se vivo para encontrar Penélope e Telêmaco, as cordas podem ser uma metáfora dos próprios Penélope e Telêmaco. Foram eles que amarraram Ulisses à vida. Se é possível afirmar que o amor tem uma função, eu arriscaria dizer que esta função é mesmo a manutenção da vida. O mundo é cheio de tentações – as sereias estão por toda parte. Se não tivermos algo que nos prenda, não resistiremos. É por amor que trabalhamos e diminuímos o sal, a gordura e o cigarro. Eis porque considero A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, um livro genial: a leveza não é, de fato, uma posição sustentável. É preciso um peso, é preciso uma cruz que nos curve e nos deixe mais próximos do chão. É preciso algumas cordas, uma Penélope e/ou um Telêmaco que nos dê motivo para nos amarrar ao mastro quando as sereias cantarem.

Parece-me, entretanto, que cada vez mais pessoas têm preferido entregar-se às sereias. Penso e não consigo chegar a uma conclusão do porquê. Estará sendo difícil encontrar alguém por quem valha a pena nos amarrar? Estarão estas pessoas frágeis demais para carregar o peso de um relacionamento? Ou será que elas não aprenderam a fazer o que não gostam e, por isso, não sabem conviver com aquele dilema de ter de cuidar mesmo quando não se está com vontade? Suspeito que a resposta correta seja: todas as alternativas anteriores – e mais algumas outras que a inexperiência me impede de perceber.

4 comments:

Deep Red said...

Quer me parecer que do modo que a humanidade vem avançando, tudo começa a girar em torno de uma só coisa: conforto. Todas as novas tecnologias visam simplesmente buscar um nível maior de conforto. Não estou dizendo que isso é ruim, afinal todos precisamos dormir em camas melhores, ouvir som com melhor qualidade, enfim, ter a nossa qualidade de vida melhorada pelos pequenos melhoramentos que tudo o que nos cerca vão sofrendo. O problema é quando percebemos que grande parte de nosso tempo livre acabamos despendendo em busca desses confortos. Tudo na vida começa a ser prático, rápido, fácil e ... descartável.
Desse modo creio que as pessoas estejam usando as mesmas regras aos seus relacionamentos. Estragou? Isso acontece, mas será que cuidamos tanto do relacionamento quanto do nosso aparelho novinho recém comprado? A solução é comprar um novo, consertar dá mais trabalho. Começou a ter problemas? Já tava mesmo na hora de trocar; compra um novo, consertar dá mais trabalho. Ainda funciona mas já faz muito tempo que tenho? Compra um novo, mais mega-ultra-moderno, todos vão perceber que troquei e eu estarei por cima ... pelo que possuo; afinal o que sou já não importa muito.
Talvez as perguntas que fizeste no final do texto pudessem ser ordenadas criando uma ordem lógica:
Será que elas não aprenderam a fazer o que não gostam e, por isso, não sabem conviver com aquele dilema de ter de cuidar mesmo quando não se está com vontade?
Estarão estas pessoas frágeis demais para carregar o peso de um relacionamento?
Estará sendo difícil encontrar alguém por quem valha a pena nos amarrar?

A cultura de buscar o conforto a qualquer custo faz realmente com que as pessoas tenham aversão a fazer as coisas que não gostam. NINGUÉM quer fazer o que não gosta, mas há momentos em que é necessário deixar de pensar somente em si próprio. Hoje em dia está difícil perceber estes momentos porque cada um olha somente para seu umbigo.
Olhando somente para suas próprias necessidades mais básicas de conforto, sem tentar observar o que os outros sentem e pensam, as pessoas são levadas a uma terrível falta de autoconhecimento. Momentos de reflexão e troca passam a ser minguados ou quase inexistentes; ou as oportunidades de reflexão que aparecem não são aproveitadas porque levam a ... pensar e fazer autocrítica. É mais ou menos como ir a uma exposição de arte e sair de lá exatamente do mesmo jeito que entrou. Essa fragilização leva as pessoas a tratar seus relacionamentos da mesma forma que tratam todo o resto, num círculo vicioso em que os sentimentos e pensamentos ganha cada vez menos valor. Tudo acaba sendo encarado de forma descartável.
Com esse panorama o que acontece é que temos medo de nos entregar aos relacionamentos porque parece que vai chegar um momento em que tudo isso irá aflorar e ficaremos sozinhos de novo apesar de todo o investimento sentimental que foi feito. As pessoas que “valem a pena” (esse termo me parece meio sectário) acabam também não se entregando e aquilo que poderia ser uma história legal acaba nem se tornando história.
Quanto a metáfora das amarras prefiro crer que as amarras representavam o amor verdadeiro que ele tinha pela família. A sociedade chegou a seu estado atual por uma profunda doutrinação dos instintos do homem (um animal não-monogâmico por natureza). A célula básica é a família, pela qual o homem abdica de seu status de “livre” para cumprir uma função social. Se o amor à família não é suficiente para manter o homem (mulher) afastado das tentações, a família desmorona. Mas não basta ser amarrado, ele deve desejar as amarras e abraçá-las, senão sempre haverá um jeito de desamarrar. Para encerrar vai uma pérola do Raulzito “Eu quero é ter tentação no caminho, pois o homem é o exercício que faz”.

Ana Maria Montardo said...

Concordo plenamente quando dizes que a pessoa tem de desejar as amarras, pois, realmente, é muito fácil arranjar um jeito de desamarrar.

Concordo parcialmente quando relacionas o consumismo com as relações pessoais. Acho que existe, sim, esta relação, mas só no início dos relacionamentos. Parece que a imagem - num sentido bem amplo, que não envolve apebas a estética da pessoa, mas também sua profissão, posição social, etc - tem sido supervalorizada na escolha de um(a) parceiro(a). Só não concordo que os casais descartem o relacionamento com facilidade para trocar por um novo. É claro que minha "amostragem" é muuuuito pequena, mas conheço muito mais pessoas que estão prolongando relacionamentos infelizes do que o contrário. Eu penso justamente o contrário de ti: as pessoas tem muita dificuldade de descartar um relacionamento fracassado. Mas por outro lado - e aí, sim, penso que tens razão - esses casais que se prolongam na infelicidade não parecem porcurar mudar a situação. Vão arrastando enquanto podem a relação.

Eu acho que um dos problemas é a falta de habilidade em conciliar objetivos. As pessoas podem buscar o conforto e ao mesmo tempo decicarem-se a um amor. Aliás, oferecer conforto ao parceiro é uma grande demonstração de amor. Eu interpretaria como uma vontade do parceiro de me proporcionar bem-estar. Isso não vale apenas para a relação homem-mulher. Pais que trabalham duro para proporcionar uma vida boa aos filhos estão, a meu ver, demonstrando amor.

Quanto às pessoas que valem a pena, creio que muitas não sabem que valem a pena. Alguém as fez acreditar que elas não valem, e isso complica tudo.

Deep Red said...

Agora eu acho que tu tocaste em um ponto fundamental: amostragem. Generalizar é sempre muito perigoso. Quando tu dizes que conhece muito mais gente tentando prolongar relacionamentos infelizes, estás analisando os que se dispõem a ter um relacionamento mais estável. No teu comentário, e no meu também, creio que estávamos falando justamente da grande quantidade de pessoas que não se dedica sequer a começar um tal relacionamento. Realmente quando falamos daqueles que já estão tentando um relacionamento estável e que o arrastam enquanto podem, talvez possamos dizer que é o medo do terrível ... novo. Encarar de novo a vida de “solteiro” às vezes assusta. Você deve reprogramar sua vida para não ter mais aquela pessoa a seu lado. Apesar de não existir mais o relacionamento, existe a presença invisível daquela pessoa, aquele fantasminha, ao seu lado. Quando você vai conversar com alguém, sempre pensará no que tem acontecido a algum tempo, e essa lembrança fatalmente será de momentos em que essa outra pessoa estava por perto, ou protagonizando. Durante um relacionamento duradouro as pessoas criam hábitos comuns, lugares comuns de convivência e amigos em comum, todos eles motivos para reencontros, nem sempre desejados. Terminar um relacionamento que foi longo e desgastante ao seu final é bem chato.
Oferecer conforto ao parceiro, transcende, na minha opinião a obtenção de confortos materiais. Oferecer conforto, para mim consiste numa definição mais ampla de conforto. Ele é proporcionado não na máquina nova ou no aparelho de som novo ou em qualquer coisa que se possa obter em uma loja qualquer por aí; e sim naqueles momentos de se aconchegar para assistir um filme, na pequena gentileza dentro de casa, no papo sobre alguma aflição, na ajuda em tarefas, no passeio planejado... Mas aí é uma questão de filosofia e estilo de vida. Claro que confortos materiais são bons, mas são uma pequena parte da coisa toda. E aí que está o problema, ultimamente estes têm sido supervalorizados.
É sabido hoje que os jovens recebem muito mais posses do que carinho, atenção e formação dos seus pais. Estes trabalham duro para dar conforto a sua família, que retribui com indiferença, críticas e brigas. Esses pais simplesmente optaram por doar suas vidas ao trabalho pelo bem da família, e deixam de ver que o que a família precisa é de união e convivência, algo que não se constrói de uma hora para a outra, é algo que se cultiva ao longo de uma vida.
Mais uma vez em relação ao que “vale a pena” (já estou começando odiar a expressão), o que “vale a pena” para uns, não “vale a pena” para outros e é por isso que as pessoas se conhecem, se relacionam e se deixam. O importante é não deixar a rejeição afete o seu modo de ser, a menos que a gente REALMENTE perceba que deve mudar em algumas coisas. Com essas pequenas mudanças sinceras a pessoa vai se moldando com uma cara cada vez mais parecida com a sua própria. Creio que o que mostramos ao mundo é um reflexo do que idealizamos para nós mesmos misturado com o que somos de verdade. As pessoas são um pacote completo (acho que tu mesma escreveu isso em algum post anterior) não dá pra separar algumas partes e ficar com as outras que interessam. Se o nosso pacote não agradou a determinada pessoa, paciência. Mas é importante saber o porquê da recusa, o que está errado ou certo, o que a outra pessoa pensa de ti e, a partir disso avaliar a situação, olhar pra dentro com sinceridade e mudar o que se tiver convicção que deve ser mudado; não pela outra pessoa, mas por si próprio. Talvez essa parte do refletir e olhar para dentro com olhar crítico seja a parte mais difícil de todas. Autocrítica sincera é um hábito que se deve construir, não nasce de uma hora para outra. Para isso é preciso parar e pensar ... Para a maioria, sentar e passar um fim de semana sozinho pensando possa parecer insanidade ou depressão, quando na verdade é o que falta para muita gente parar de cometer sempre os mesmos erros.
Quanto às pessoas que acham que não valem a pena, talvez precisem de ajuda profissional, denota auto-estima baixa que pode existir por diversos motivos. Como não sou profissional da área e nem conheço seus métodos de análise, me abstenho de opinar sobre soluções. Mas às vezes o que acontece é simplesmente falta de diálogo e demonstração de interesse mútuo em dialogar, em resumo falha de comunicação. Mas às vezes dizer o que se sente e pensa é complicado, principalmente se achamos que estamos sendo julgados pela outra pessoa; por isso que eu digo quem julga é juiz, eu sou só ... gente.

Um abraço

Desemmimmesmado said...

Maravilha Ana, convivo contigo e creio que este meio (net) aprofunda este convívio.
São muitas questões interessantes, vou direto ao ponto: Acho que a sua pergunta matou a charada que formulasses (que destreza!). acredito que as pessoas não agüentam o peso dos relacionamentos. Mas os meios eu divirjo de vc.
Primeiro, acho que Sócrates escolheu não ir com a sereia não pela família (q por mais que a Odisséia possa ter sido interpretado para esta ideologia, a família, como valor, não era o mais importante naquela época. Ver filme Satyricon de Fellini – que retrata os costumes gregos) e sim, pq ele sabia que era preciso voltar para casa. Ele poderia ir com a sereia e, seu diferencial era saber que precisaria renunciar a promessa de absoluto prazer. As cordas seriam assim a sua consciência, diferencial entre os brutos, animais.
O amor só foi libertador nos livros esotéricos. Ele é condição encontrar a existência. Qdo tu colocas que ser livre é ser umbigo, tu estás colocando o amor na outra extremidade da polaridade “o amor é ser livre”. Acho que o amor exige nutrição e o cuidado é sempre individual pq é livre (existencial, única condição real da vida). E a exigência de cuidar do outro é não conhecer o amor, que no fim é desleixar da potencialidade de viver o amor de si próprio. Quem não cuida de si, dependerá que outro cuide e exigirá isto, amor apegado (talvez pela falta de modelo, experiência). Amar é estar numa condição livre para trocar com o social. E a sereia é a tentação enquanto amor patológico, que consome, sufoca e mata.
Acho tb que a corda são Penélope e Telêmaco enquanto amor e porto seguro, e que é a manutenção a vida. E qto ao Kundera, a cruz que bota peso no indivíduo é a sua existência. Tomas amava Tereza de todas as formas e só podia amá-la enquanto ela fluía na posição desejante dele, sendo sujeito individual, e não subalterna ou dominadora, ele se encontrava com o eu individualizante. Sem controle da situação, permitia ele se encontrar com Ela.

São muitas questões. Beijo. Até! EMRIQI